Mitos quase urbanos
Suicídio e eutanásia
Ainda tomando como pretexto Sousa Martins
Persiste ainda em disputa sem conclusão a avaliação da autenticidade dos relatos que se fundamentam na certeza de que a causa da morte de Sousa Martins foi o suicídio.
Do ponto de vista do sentido em que aqui discorremos sobre a matéria, tal atestação, histórica ou clínica, é irrelevante. E se muitas alegações contra a hipótese ou certeza do suicídio as devemos tomar como legítimas, quando, explicitamente, têm como objectivo descarregar a imagem do venerado médico e humanista da sombra de uma derradeira manifestação de humana fraqueza, eu alegaria que não é senão na humana fraqueza que se manifesta mesmo a superior dimensão de um grande homem, de um santo, não no canónico e divino sentido, mas no humano.
O tema do suicídio de Sousa Martins é, então, aqui tomado como uma metáfora, venha ou não a ser confirmado. E é na metáfora e não no facto histórico, para mim todos os factos históricos são metáforas, que se congrega o profundo sentido do tema e do episódio.
E partimos do pressuposto de que, no desabafo transmitido à beira do colapso e na sua hermenêutica, se encerra um inesgotável universo de complexos sentidos de exploração que justificam a congregação da metáfora no sujeito.
Do meu ponto de vista o suicídio nunca macularia a venerada memória de Sousa Martins. Seria talvez o seu derradeiro, sintético e mais lúcido testamento.
A morte é mais forte do que eu (…). Um médico ameaçado de morte por duas doenças, ambas fatais, deve eliminar-se por si mesmo.
É mesmo dispensável perdermos tempo e energia a documentar toda uma vida que subjazeria a esta disposição. As agonias e desgraças que acompanhou no exercício da sua prática clínica, na assistência a enfermidades tão contundentes como a tuberculose ou mesmo a loucura. O profundo conhecimento da dor, da indignidade do ser humano na sua mais profunda miséria, exposto à comiseração, ao surdo claudicar, tantas vezes hipócrita, dos circunstantes para quem a vida prossegue, amarrados à e congregados na agonia do enfermo. A dor especular, na família, nos amigos.
E então atingimos o profundo sentido da humanidade e do alerta enquistado neste desabafo: O (um) médico (…) deve eliminar-se por si mesmo.
Quantas vezes Sousa Martins se terá interrogado sobre as razões que o impediam de eliminar o paciente?
Numa altura em que se retoma contundentemente o tema da legitimidade da eutanásia, este episódio e este desabafo, tomados como metáfora, são um mito quase urbano.
E se, fundados nesta metáfora, quiséssemos reformular a questão da eutanásia, colocaríamos simplesmente a questão: Ao paciente não devem ser facultados os meios que o médico pode com perícia utilizar, para decidir sobre o sentido e a oportunidade de prolongar a vida?
Quando Sousa Martins equaciona a questão desta forma, não se tratará da derradeira expressão de revolta contra os privilégios do seu estatuto?
E então surge-nos com a clareza da súbita iluminação o santo ou o profeta, não canónicos mas metafóricos.
Ao fim e ao cabo, cada santo é em última instância uma metáfora.
Suicídio e eutanásia
Ainda tomando como pretexto Sousa Martins
Persiste ainda em disputa sem conclusão a avaliação da autenticidade dos relatos que se fundamentam na certeza de que a causa da morte de Sousa Martins foi o suicídio.
Do ponto de vista do sentido em que aqui discorremos sobre a matéria, tal atestação, histórica ou clínica, é irrelevante. E se muitas alegações contra a hipótese ou certeza do suicídio as devemos tomar como legítimas, quando, explicitamente, têm como objectivo descarregar a imagem do venerado médico e humanista da sombra de uma derradeira manifestação de humana fraqueza, eu alegaria que não é senão na humana fraqueza que se manifesta mesmo a superior dimensão de um grande homem, de um santo, não no canónico e divino sentido, mas no humano.
O tema do suicídio de Sousa Martins é, então, aqui tomado como uma metáfora, venha ou não a ser confirmado. E é na metáfora e não no facto histórico, para mim todos os factos históricos são metáforas, que se congrega o profundo sentido do tema e do episódio.
E partimos do pressuposto de que, no desabafo transmitido à beira do colapso e na sua hermenêutica, se encerra um inesgotável universo de complexos sentidos de exploração que justificam a congregação da metáfora no sujeito.
Do meu ponto de vista o suicídio nunca macularia a venerada memória de Sousa Martins. Seria talvez o seu derradeiro, sintético e mais lúcido testamento.
A morte é mais forte do que eu (…). Um médico ameaçado de morte por duas doenças, ambas fatais, deve eliminar-se por si mesmo.
É mesmo dispensável perdermos tempo e energia a documentar toda uma vida que subjazeria a esta disposição. As agonias e desgraças que acompanhou no exercício da sua prática clínica, na assistência a enfermidades tão contundentes como a tuberculose ou mesmo a loucura. O profundo conhecimento da dor, da indignidade do ser humano na sua mais profunda miséria, exposto à comiseração, ao surdo claudicar, tantas vezes hipócrita, dos circunstantes para quem a vida prossegue, amarrados à e congregados na agonia do enfermo. A dor especular, na família, nos amigos.
E então atingimos o profundo sentido da humanidade e do alerta enquistado neste desabafo: O (um) médico (…) deve eliminar-se por si mesmo.
Quantas vezes Sousa Martins se terá interrogado sobre as razões que o impediam de eliminar o paciente?
Numa altura em que se retoma contundentemente o tema da legitimidade da eutanásia, este episódio e este desabafo, tomados como metáfora, são um mito quase urbano.
E se, fundados nesta metáfora, quiséssemos reformular a questão da eutanásia, colocaríamos simplesmente a questão: Ao paciente não devem ser facultados os meios que o médico pode com perícia utilizar, para decidir sobre o sentido e a oportunidade de prolongar a vida?
Quando Sousa Martins equaciona a questão desta forma, não se tratará da derradeira expressão de revolta contra os privilégios do seu estatuto?
E então surge-nos com a clareza da súbita iluminação o santo ou o profeta, não canónicos mas metafóricos.
Ao fim e ao cabo, cada santo é em última instância uma metáfora.
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