O Teatro Anatómico

http://www.astropop.com/anatomical/introduction.html

terça-feira, 10 de novembro de 2009

O muro de Berlim. O fim da guerra fria e o eclodir da guerra quente.



Duas cartas de Einstein

Kathleen Stocker, Assistant Archivist no Museu de Medicina das Forças Armadas Americanas (Army Medical Museum) em Washington, acaba de publicar duas cartas inéditas de Einstein, no blog A Repository for Bottled Monsters, iniciativa não oficial que reúne vários técnicos do Museu.



A acuidade e actualidade do assunto das cartas, que se inserem no âmbito da actividade do ECAS (Emergency Commitee of Atomic Scientists) fundado pelo próprio Einstein e Léo Szilárd, constituem um excelente tema de reflexão no rescaldo das comemorações das duas décadas passadas sobre a queda do Muro de Berlim.
Entendi pois oportuno aqui reproduzi-las.






 
Porque razão o ECAS só surge em 1946?
Ah... é verdade. Eles não sabiam, até então, o que andavam a fazer...

A queda do Muro de Berlim, o contexto específico em que ocorreu, é um episódio ainda inavaliável.
Pôs termo à guerra fria e fez eclodir a guerra quente.
Terá ocorrido no momento e da forma adequada?
Que dirão os mártires dos massacres étnicos?
Nada. Não falam.
Foi, sem dúvida, a apoteose da globalização.
 
Perguntará o leitor: que tem a matéria a ver com medicina?
Logo verá

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Formas de permanecer


Formas de permanecer


Muitas são as formas de o homem permanecer, após o seu material carcereiro se extinguir. Uma delas é no perfume que uma singela flor seca entre as páginas de um livro exala.E na sua relação com quem sobrevive, ou sucede, pode ainda ser objecto de afecto tanto quanto de manipulação, violência, ou abandono.É o abandono que parece esperar em breve o Menino Hermínio de Azevedo. O leitor, se não conhecer o Cemitério dos Prazeres, estará já a pensar: o homem ensandeceu, quem raio é o Menino Hermínio?Mas durante gerações não havia quem entrasse pela álea axial do Cemitério cuja atenção não ficasse captiva de uma singela sepultura sempre bem cuidada e ornamentada com flores. Era a sepultura do Menino Hermínio, cuja vida foi precocemente cerceada há quase século e meio, porventura por qualquer enfermidade, na plenitude da infância. A imagem que aqui divulgo dispensa comentários e descrições.Pois foi assim que o Menino Hermínio permaneceu, nos rituais quotidianos de milhares de visitantes que nem tiveram o privilégio de o conhecer em vida. O Menino Hermínio passou a ser aquela apelativa imagem de Jesus, infante, deitado e adormecido sobre uma cruz, segurando na mão esquerda, abandonada em queda, uma coroa de espinhos.

Pois quem entre hoje no Cemitério dos Prazeres já não verá flores. No pé esquerdo do Menino Hermínio, no local exacto onde, na imagem que divulgo, alguém depositou uma rosa vermelha, penduraram agora, com um arame, um letreiro em lata que reza: ABANDONADO.

Será assim que vai permanecer na nossa derradeira memória?

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

A medicina, a antropologia física e a erradicação dos fracos

A propósito de Mendes Correia

Tópico de abordagem


José Ramiro Pimenta, O laboratório de Mendes Correia. Geo-Historiografia do Programa de Investigação da "Cultura Castreja" na Terceira Década do Século XX. Actas do X Coloquio Ibérico de Geografia, Évora, 2005.

http://www.apgeo.pt/files/docs/CD_X_Coloquio_Iberico_Geografia/pdfs/108.pdf

sábado, 4 de julho de 2009

Mitos urbanos. O homem que quis ser branco.

Deus, ou o destino, ilumine Obama e o dissuada de claudicar à tentação de querer ser branco.


No ano em que se consagra a vitória de Obama, o primeiro residente preto na Casa Branca, morre, no cúmulo da desgraça humana, velada pela ilusão do sucesso e do mito, o homem cuja vida foi marcada pela perversa manipulação do desejo de ser branco.
Ao revermos os registos dos primeiros sucessos de Michael Jackson, correm-nos pelo rosto as lágrimas, face à espontaneidade, à alegria, que a sua imagem de criança e adolescente exalava.
Os mecanismos sócio-psicológicos que impulsionaram aquela criança para o itinerário de vida que produziu a aberração humana estão ainda por avaliar. Que significado teria, na transição do Século XX para o Século XXI, ser branco ou preto? Seria que tinha mesmo e somos nós quem o não compreende?
E se esta questão cultural e civilizacional merece por si profundas reflexões e avaliações, nomeadamente acerca da presunção da consolidação derradeira das mais significativas conquistas da cultura e da civilização humanas, a formulação que queremos propor é bem mais contundente.
Como pôde, suportada em que contornos éticos e deontológicos, a medicina aderir a tais procedimentos e manipulações? Quais são, eticamente, os limites de legitimidade da aplicação do conhecimento humano?
O argumento mais recalcitrante reporta-se ao exercício da liberdade individual no ubíquo e ambíguo horizonte de uma certa representação do paradigma incontestável da democracia e da sociedade liberal. Seja, a medicina é uma mercadoria, cuja oferta é determinada pela procura. Afinal, pode produzir qualquer mercadoria que, no exercício das suas liberdades, o consumidor estiver disposto a reclamar. Passou a ser a enunciação da disposição para o consumo a propor à medicina a legitimidade do produto médico. A ética médica ruiu conclusivamente.
Com a mais soberba hipocrisia, no entanto, continua a invocar fundamentos éticos para se recusar a progredir no aprofundamento de tópicos como a eutanásia, o aborto e outros…
E o que se investiga relativamente ao episódio do óbito de Michael Jackson é a eventualidade da má aplicação de anestésicos nas horas anteriores ao desfecho. O resto, seja, cerca de um quarto de século de manipulação aberrante, nada tem que ver com o desfecho. Celebra-se, de resto, congregado com o mediático apelo do mito.
Será que a medicina ainda virá a disputar o protagonismo no êxito mediático do paciente?

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Medicina e bruxaria.

No que toca a acudir a si próprios, médicos, bruxos e deuses estão no mesmo pé, indefesos.
Se tu és o Rei dos Judeus, salva-te então a ti próprio. Lucas XIII, 23.

O texto que reproduzo em seguida foi extraído de Eliza Lynn Linton, Witch Stories, 1861. De complexo entendimento, para não utilizar o tópico incompreendida, porque tal remeteria desde logo para a intenção do receptor e não para a complexidade do emissor, E. L. Linton, todavia não expressamente uma activista, bem pelo contrário, mas tão só um sujeito que se impôs para lá das restrições impostas ao alcance do seu feminino género, desperta ainda hoje díspares avaliações no domínio da história, ou narrativa do movimento feminista britânico. A sua precursora argúcia fica registada neste pequeno trecho:

(…); a straw – a broomstick- the serviceable imp ever at hand- was enough for them; and with a pot of magic ointment, and a charm of spoken gibberish, they may visit the king on his throne, , or the lady on her bower, to do what ill was in their hearts against them, or to gather to themselves what gain and store they would. Yet with all this power the superstitious world of the time saw nothing doubtful or illogical in the fact of their exceeding poverty, and never stayed to think that if they could transport themselves through the air to any distance they chose, they would be but slippery holding in prison, and not very likely remain there for the pleasure of being tortured and burnt at the end. But neither reason nor logic had anything to do with the matter. (…)

É óbvio que a autora se está a referir ao histerismo da caça às bruxas, que trespassaria inesperadamente o dealbar da modernidade, questionando-se sobre quem cria nelas ou as inventava, se elas próprias, se os arautos da razão.
E para compreendermos bem o que a autora quer sugerir, não será inoportuno reportar os mais claros indícios da ingénua crença da medicina na bruxaria, ora ao alcance do seu foro, ora fora dele.

Physicians were involved in witches’ trials in many
ways. Often, they were called upon to diagnose the
malady of a “bewitched” or “possessed” person.
If they were able to identify the illness, their opinion
was usually (but not always) respected, and the case
against the presumed witch was accordingly dropped.
Belief in possession has been fairly common
throughout the history of religion. Tales abound of
people into whose body, it was believed, another
being or creature had entered, causing hysteria,
convulsions, and aberrant behaviour. The victim was
said to develop the physiognomy, personality, even
the voice of the possessing demon. Once the
physician had adjudged a victim to be not suffering
from any recognizable malady, the case passed into
the hands of the Church, whose exorcists were
responsible for any subsequent “treatment” of the
possessed.
When a witch was arraigned, a physician was
supposed to examine both her physical and mental
condition and determine her fitness to undergo the
requisite torture. (Since there were relatively few
physicians, these examinations were generally
conducted by barbers or barber-surgeons, unless a
given case was of unusual importance.) Physicians or
barber-surgeons were also required to tend the
accused (though not excessively) during torture, and,
in general, to serve as a sort of medical advisor to the
court.
Examination of the accused, in accord with
contemporary demonology. included a search for the
so-called “devil’s stigmata.” These were insensitive
marks on the skin, such as red spots, ulcers, or
depressions, which were considered proof of having
had sexual relations with the Devil.
Physicians were often responsible for treating
persons “bewitched.” One of the first books
describing the treatment of illnesses caused by
witchcraft was Giovanni Battista Codronchi’s
De
morbis veneficis ac veneficiis libri quatuor, published
in 1595. Codronchi devoted a part of his work to the
description of illnesses caused by witchcraft. Then, in there are records of the examination by
a relatively progressive manner (one of his daughters was also “bewitched”), he tried to explain and recommend their treatment.
There are records of the examination by physicians and pharmacists of so-called witches’ ointments and philtres. They contained many extracts from hallucinogenic herbs and effects were either unknown or not well understood. Witches’ experiences, wrote Weyer, are delirious dreams induced by drugs. Elsewhere he wrote that witches’ dreams were caused by the somniferous drugs in their ointments, and added to this list of familiar European substances such Oriental drugs as opium and hashish.

Jaroslav Nemec, National Library od Medicine, London, 1974.

Ora aqui temos uma parábola, porque o itinerário é de facto parabólico, com um sentido muito próximo do daqueloutra do lobo, do cordeiro e da couve. Os clérigos não importunariam a medicina, enquanto ela participasse na caça à bruxaria. Em breve, acusariam os médicos de bruxos, até que os médicos, muito mais tolerantes já em relação à bruxaria, que haviam transferido para o foro clínico, passassem a perseguir os clérigos.
Bem, no período histórico, da sua história, claro, a que se reporta esta abordagem de Jaroslav Nemec, despontava no universo do experimentalismo médico a sistematização dos dados adquiridos em duas áreas, a anatomia, consequentemente a cirurgia, e a urologia.
Ora, não é inoportuno questionar-me sobre se muitas das genericamente denominadas witch bottles, que despertam ainda uma curiosidade fetichista deambulante entre uma etnografia inepta e o culto do insólito, não serão meros recipientes de ensaio de urologistas farmacêuticos. É que a urina foi não apenas um medium para o diagnóstico, como um medium para o metabolismo de certos fármacos. Depois, em muitas delas abundam fragmentos metálicos, o que pressupõe a experimentação da acção de ácidos sobre certos metais, ou mesmo algumas substâncias biológicas.
Vale a pena ler, de Robert Graves, Difficult questions, easy answers, Garden City, NY, Doubleday & Co, 1973. Era muito remoto o conhecimento empírico de que a urina constituía o melhor medium para potenciar a acção de alguns alucinogéneos, ou anestésicos na nomenclatura respeitante ao uso clínico.
Na própria ambiguidade antinómica da nomenclatura, alucinogéneo quando o seu consumo determina a acção terapêutica e anestésico quando o seu uso se integra na prática clínica, se deixam antever múltiplos sentidos de exploração.

terça-feira, 23 de junho de 2009

A propósito de Eles andam no Eufrates à procura de uma fronteira, de Alexandra Lucas Coelho, Público, 23 de Junho de 2009.

É voz corrente que Einstein terá um dia confessado que descobrira a teoria da relatividade por andar à procura de Deus.
É já alguma coisa, que uma procura não seja aleatória, embora possa descobrir o que não procurava.
Por portas travessas, Einstein pode ter descoberto o diabo.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

The perfect woman

The perfect woman.

Perfect bodies, perfect minds, perfect gods. To my friends Lena and Clara. And Evan. And their kids.

What is that, perfection? A sculpture by Praxiteles, Phidias, Buonarroti, Henri Moore? A painting by Leonardo? An anatomic illustration by Calgar? One shell, one flower, a bird? A star?
A lost bone of one thousand years man, of a dinosaur, of a mammoth?
A body staying on a beach, waiting for cancer?
An illuminated mind available to proffer an universal physical law? A poet, a philosopher?
Do you think it about you? That you are perfect?
There is no perfection on the universe. The most imperfect had been gods.
Run by your perfection. It, she or he may be beside you. That’s the perfection, the one yours. Fake to everyone else.
Because it, she or he doesn’t exist outside you and your mind.
Perfection stays on your mind, inside it. And doesn’t may go away out.
And… is this, and nothing more, the perfection.
That’s the sense of my perfect woman. Nobody, better then me, knows she is not the perfection. She is my woman. And that is my peace.
The search for perfection is
medica res. Or morbid mind’s anatomy.
About the woman who had lived searching for a god.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Licantropia

O Capuchinho Vermelho

Interpelações embaraçosas


Há dias um amigo, muito astuto, questionou-me sobre a razão pela qual eu subintitulara um ensaio aqui inserto O Capuchinho Vermelho, invocando a corrente transmissão da forma como, na história, o lobo interpelara no bosque a menina.
Devo confessar que não esperava a questão e, como o meu amigo é muito mais astuto do que eu, que até sou um pouco lorpa, entrei em pânico, a congeminar como me haveria de sair airosamente do assunto, sem expor a minha cretinice.
Eis a resposta:
Desde criança, quando ouvi pelas primeiras vezes a história do Capuchinho Vermelho, havia sempre uma interrogação a que não conseguia responder. Porque razão o lobo, surpreendendo a menina só e indefesa no bosque, não a tinha comido logo ali?
Só havia uma explicação: estava faminto. Matreiro, logo pensou, quando ouviu a leviana e ingénua resposta, que podia encher a pança não só com a menina, mas também com a sua avó.
Ora, fora a desatenta resposta da menina que induzira o lobo na congeminação do plano para satisfazer a gula.
Se não fora essa a explicação, pensei mais tarde, quando já me despontava nos queixos a barba, só havia outra. Tratava-se de uma subtil metáfora tomando como tópico a licantropia. Ali, na fábula, eram todos licantropos, o próprio, a avó e a menina.
Tratava-se então de medica res, no primitivo e subtil estádio da fábula.
E então o meu amigo, ou Vossemecê, que decifre o resto.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Mitos quase urbanos

Mitos quase urbanos
Suicídio e eutanásia

Ainda tomando como pretexto Sousa Martins



Persiste ainda em disputa sem conclusão a avaliação da autenticidade dos relatos que se fundamentam na certeza de que a causa da morte de Sousa Martins foi o suicídio.
Do ponto de vista do sentido em que aqui discorremos sobre a matéria, tal atestação, histórica ou clínica, é irrelevante. E se muitas alegações contra a hipótese ou certeza do suicídio as devemos tomar como legítimas, quando, explicitamente, têm como objectivo descarregar a imagem do venerado médico e humanista da sombra de uma derradeira manifestação de humana fraqueza, eu alegaria que não é senão na humana fraqueza que se manifesta mesmo a superior dimensão de um grande homem, de um santo, não no canónico e divino sentido, mas no humano.
O tema do suicídio de Sousa Martins é, então, aqui tomado como uma metáfora, venha ou não a ser confirmado. E é na metáfora e não no facto histórico, para mim todos os factos históricos são metáforas, que se congrega o profundo sentido do tema e do episódio.
E partimos do pressuposto de que, no desabafo transmitido à beira do colapso e na sua hermenêutica, se encerra um inesgotável universo de complexos sentidos de exploração que justificam a congregação da metáfora no sujeito.
Do meu ponto de vista o suicídio nunca macularia a venerada memória de Sousa Martins. Seria talvez o seu derradeiro, sintético e mais lúcido testamento.
A morte é mais forte do que eu (…). Um médico ameaçado de morte por duas doenças, ambas fatais, deve eliminar-se por si mesmo.
É mesmo dispensável perdermos tempo e energia a documentar toda uma vida que subjazeria a esta disposição. As agonias e desgraças que acompanhou no exercício da sua prática clínica, na assistência a enfermidades tão contundentes como a tuberculose ou mesmo a loucura. O profundo conhecimento da dor, da indignidade do ser humano na sua mais profunda miséria, exposto à comiseração, ao surdo claudicar, tantas vezes hipócrita, dos circunstantes para quem a vida prossegue, amarrados à e congregados na agonia do enfermo. A dor especular, na família, nos amigos.
E então atingimos o profundo sentido da humanidade e do alerta enquistado neste desabafo: O (um) médico (…) deve eliminar-se por si mesmo.
Quantas vezes Sousa Martins se terá interrogado sobre as razões que o impediam de eliminar o paciente?
Numa altura em que se retoma contundentemente o tema da legitimidade da eutanásia, este episódio e este desabafo, tomados como metáfora, são um mito quase urbano.
E se, fundados nesta metáfora, quiséssemos reformular a questão da eutanásia, colocaríamos simplesmente a questão: Ao paciente não devem ser facultados os meios que o médico pode com perícia utilizar, para decidir sobre o sentido e a oportunidade de prolongar a vida?
Quando Sousa Martins equaciona a questão desta forma, não se tratará da derradeira expressão de revolta contra os privilégios do seu estatuto?
E então surge-nos com a clareza da súbita iluminação o santo ou o profeta, não canónicos mas metafóricos.
Ao fim e ao cabo, cada santo é em última instância uma metáfora.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Adversus modernitatem

Adversus modernitatem
Para esconjurar esse peregrino conceito de pós modernidade.

Não houve talvez na história do pensamento contemporâneo conceito tão ambíguo e habilitado a referir posturas ideológicas tão antagónicas como o de pós modernidade.
De tal forma que chegou a ser proposto como alternativa de paradigma, que nunca poderia ser. Embora tenha criado a ilusão de que era esse o seu sentido.
Estou todavia convicto de que estruturou alguns itinerários derivantes ou divagantes do eixo estruturador da modernidade. Não mais do que isso.
Por isso tornou-se num tópico ele próprio aglutinado com o de modernidade.
A história é por nós esgrimida para avaliar o limitado alcance dessa disposição conceptual. Partindo do princípio de que, se não conseguirmos desmembrar a modernidade nas suas raízes, no ponto do itinerário em que rompeu com a tradição, nada mais nos resta senão continuarmos enredados com ela.
Temos que dissecar o momento histórico em que a orientação do conhecimento humano enveredou por determinado itinerário e não por outro, entre aqueles que não lhe estavam vedados. Trata-se de uma psicanálise exaustiva.
Não pós, mas contra, ou no exercício da crítica sistemática da modernidade. Seja, retroactiva.
Pós modernos são hoje todos. É uma praça de concórdia. Nós somos contra a modernidade. Prisioneiros talvez ainda do dever, por ingenuidade, de salvar alguns princípios ou aquisições ética e culturalmente válidos. Sabemos que será sempre uma avaliação ideológica.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Ubiquidade na prática de um médico.

A extravagante representação social da prática de um médico.
Sousa Martins.
Da medicina à taumaturgia.

If the doors of perception were cleansed every thing would appear to man as it is, infinite. For man has closed himself up, till he sees all things through narrow chinks of his cavern.

Aldous Huxley, The Doors of Perception, 1954.

Sousa Martins suicidou-se com cinquenta e quatro anos, com uma injecção de morfina, em 1897.

Fora contaminado pela tuberculose, após protagonizar as mais estruturadas campanhas contra a sua disseminação, empreendendo medidas estruturais de saneamento público e dedicado à assistência clínica aos enfermos. Sofria ainda de doença cardíaca agravada.

Antes da solução conclusiva terá confiado a um amigo: A morte é mais forte do que eu. Um médico ameaçado de morte por duas doenças, ambas fatais, deve eliminar-se por si mesmo.

Filho de um carpinteiro de Alhandra, orfão com sete anos de idade, iniciou o seu contacto com a sua futura profissão, como ajudante de farmácia, no estabelecimento de um tio. Em 1864 concluíu o curso de farmacêutico na Escola Politécnica e o de Medicina em 1866 na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Nesta peculiaridade reproduz um itinerário disciplinar cuja avaliação estruturou um permanente contencioso na História da Medicina e da Cultura Médica em Portugal, em torno da determinação do papel dos oficiais das práticas adjacentes, sangradores, meios cirurgiões, algebristas, farmacêuticos, na consolidação de uma medicina operativa contra uma medicina retórica e livresca.

Em trinta e um anos, sem abandonar a prática clínica que estruturou a imagem mais apelativa com que socialmente se representou, percorreu um notável e fulgurante itinerário académico e político-cultural, protagonizando reformas determinantes no sistema de saúde pública.

Foi a sua humanidade e a relação com o enfermo, a ubiquidade do domínio em que produzia a cura, extavagante entre a ciência e uma espontânea taumaturgia, a imagem que mais marcou o culto social pela sua personalidade. No Campo Mártires da Pátria, o monumento que o invoca, dominando a praça fronteira à Antiga Escola Médico-Cirúrgica, é objecto de um culto quotidiano, com o pedestal ornado com coroas de flores, lápides, ex votos, reproduções em cera de membros enfermos, ou sarados, como num singelo santuário de província. Santo para muitos.

Numa altura em que a problemática de atribuição de santidade retornou à ordem do dia, no contexto da canonização de Nun'Álvares Pereira, a sugestiva congregação da medicina com a santidade, na peculiar personalidade de Sousa Martins, suscita reaprofundamentos sucessivos e consistentes.

Do ponto de vista da avaliação eclesiástica, a sua canonização constituria sempre um paradoxo, porque se suicidou.

Um apelo.


quarta-feira, 10 de junho de 2009

Que raio de gente andava Vesalio a esfolar?


Os apolíneos esfolados de Vesalio

Donatello, Leonardo, Buonarroti e Calgar

Que raio de gente andava Vesalio a esfolar?


Ensaio breve




Um dos primeiros argumentos verberativos levantados contra Vesalio suscitados pela publicação de De (…) Fabrica, foi o de que era dispensável expor publicamente a prática da dissecação de cadáveres humanos. A escola de Salerno sempre se legitimara com o argumento de que praticava a dissecação e a observação analítica anatómica em porcos, cuja anatómica morfologia muito se aproximava dos humanos.
Bem, não me vou pronunciar sobre a similitude anatómica, mas a similitude etológica seria celebrada cerca de 1530 por Johanes Placentius, ou Publius Porcus, ao publicar Pugna Porcorum, talvez precursor e fonte de inspiração de George Orwell. Já muito anteriormente alguém dera o mote à metáfora, ao enriquecer a hermenêutica da Ilíada com a Batrachomiomahia. No meu périplo escolar, as primeiras dissecações que nos propuseram foram aplicadas a rãs.
O que em Salerno se fazia às claras e se reproduzia nos tratados talvez não correspondesse ao que se fazia no esconso. Também nunca saberemos se as referências de Vesalio à vivissecação são mais do que provocação e petulância.
Do que temos quase a certeza é de que Vesalio não aplicou as suas novidades àqueles sujeitos retratados por Calgar, tão divinos, tão elegantes, que até parecem ter ressuscitado da obra escultórica de Fídias ou de Praxíteles.
Leonardo documentou em desenhos espontâneos a sua observação partilhada no teatro anatómico, mas os registos são de detalhe e não toleram extrapolações que permitam identificar o estatuto dos pacientes.
A obra dos grandes mestres da escultura renascentista, de Donatello a Buonarroti, sugere informação recolhida in situ, no teatro anatómico. Mas nunca saberemos se a informação foi recolhida em primeira mão, ou advinha já das suas fontes, os clássicos da escultura antiga.
O que ressalta da documentação é que a dissecação estava restrita, mesmo nos períodos e círculos mais liberais, a criminosos condenados, prisioneiros de guerra mouros, ou ciganos (arménios, na eufemística expressão). Mas o que ficou escrito e registado é apenas uma ínfima porção da complexa realidade do que é, ou foi a vida.
Que raio de gente andava Vesalio a esfolar? Provavelmente ninguém. Tudo aquilo foi inventado pelo artista. Morbida Ars e nada mais. Quem nos dera que assim fora.

sexta-feira, 1 de maio de 2009




Manuel de Castro Nunes
















NO LIMIAR DE UMA HISTÓRIA DA MEDICINA EM PORTUGAL

A "medicina popular". Contribuição para a identificação de um género.







Évora, 1992







A PRIORI



Qualquer que seja a sua configuração final, este texto comunga com outro(0) um inexorável destino. Escrito a juzante e para explicitação de um ensaio que escrevo há alguns anos e sobre o qual não quis ainda perpetrar a prepotência de lhe pôr fim, desejo expressamente que participe da sua natureza de esboço, matéria em amálgama para modelar no exercício de uma prática disciplinar que não visa o objecto mas tem em horizonte o sujeito. Porque a história da medicina interessa-me como história do corpo, ou mais radicalmente dos corpos, como história das práticas históricas e como história das práticas disciplinares.
Um certo carácter ou humor radical que quero que exale entenda-se como exercício de estética, ou como a forma adequada ao exercício de uma psicanálise profunda.
Para alicerçar todo o meu trabalho, faço-lhe servir de contexto as narrativas de alguns casos e em particular aquelas que publico em anexo. O leitor terá que se dar conta de que, como não podia deixar de ser, o contexto é bem mais sábio do que todo o meu discurso.

(0) - Uma Disciplina no Eixo das Rupturas. Laudas para um Projecto de Trabalhos em História da Medicina; entre a História da Medicina, a História das Práticas Médicas e a História dos Actos Médicos.



I
Preliminares acerca da reputação das medicinas



"La Medicina nadie la conoce; dicese, que hai, pero nadie sabe donde vive. El Medico es un embuste politico, que solo sirve de engalanar las republicas, no de curar enfermedades: assiste à los enfermos, pero no los sana; es un testigo de los triumphos de la naturaleza, los milagros, y las muertes."
"Como le decia Molier à su Boticario V. mds. les escriben a estos sus villetes en lenguaje mestizo, Griego, Latino, u aun diabolico, y mi Doctor en Castellano de Castilla; este sentencia a los enfermos en Romance, y V. mds. en Latin, para que no puedan entenderlo. Mi Medico bien acertaria a llamarle omento al reda¤o, expuicon a la acci¢n de escupir, excreto a lo que se ensucia, cathartico al purgante, pus a la materia, el sangre a la sangre, morbo a la enfermedad, bilis a la colera, pituita a la phlegma, pleuritis a la dolor de costado, singulta al hipo, y asi de lo dem s; pero quiere hablar en lenguaje de Christianos, y no tiene el empe¤o que v. mds tienen, pretendendiendo persuadir con estas voces forasteras a la inteligencia vulgar, que saben v. mds. mucho mas en materia de Medicina, que los Potreros, y las Comadres de parir."
"Por zahumar a ventosidades las banquetas de un Coche, recoger caxas, reloges, y fortixas, engalanar la mujer, y engreir los hijos que la hacen, han encarecido tanto los Medicos, y Boticarios sus Visitas, y Botes, que con solo un mal de madre que pillen en una melindrosa de las que desmayan de ver un Raton, tienen elles achaque para desnudar un mayorasgo. Tantos testigos hai de esta verdad, como enfermos; pues mas pobres, y difuntos ha fabricado la Medicina, que las pestes, y las epidemias. Lector mio, desenga¤ate, y advierte, que lo que encierran las redomas, es agua de hinojo, peregil, llant‚n, ruda, y otras verdolagas, y verzotes. Lo que ocultan aquellos botes rotulados (que si tuvieron assas, mas parecerian bacines de Monjas) son pepitas, y simientes de melon, calabazas, y pepinos; ra¡ces de artemila, mejorana, y agenjos; resinas de diferentes le¤os, y plantas, y todo lo puedes tu recoger mas fresco, y de valde en los campos comunes adonde lo arroja la naturaleza."
Num célebre artigo(1) que o pôs em contencioso com Ricardo Jorge, Silva Carvalho recusou-se, sem qualquer justificação, a considerar no horizonte da literatura médica do século XVI um dos mais insignes vestígios de descrença na reputação da medicina, o Diálogo da Perfeyçam e partes que sam necssarias ao bom Medico de Afonso de Miranda, Contador da Fazenda do Reyno e Casa de Sua Magestade o Rei D. Sebastião(2). Mas ao fazê-lo parecia deixar, com certa ingenuidade, presumir um critério para a identificação dos objectos disciplinares da etnografia médica(3).
Os fragmentos em castelhano que abrem este capítulo extraí-os de duas epístolas e de um prólogo que abrem uma obra de estatuto ainda por definir, mas cuja genealogia se entende passar por Gil Vicente, Francisco de Villalobos, Pero Mexia, pelo Dialogo da Perfeyçam, D. Francisco Manuel de Mello e numa outra dimensão ainda por avaliar por Moliére. Trata-se de Medico para el bolsillo. Doctor a pie, Hypocrates chiquito. Medicina breve, facil y barata, para mantener los cuerpos en salud, y curarlos de los achaques mas comunes. Sirve desde estye presente año, hasta el dia de el Juício particular de cada pobre. Y lo envia desde Portugal, … unos de valde, y à otros por su diñero el Doctor Don Diego de Torres Villarroel, Cathedratico de Mathematicas en la Universidad de Salamanca. Con licencia. En Sevilla, en la Imprensa REAL de Don Diego Lopes de Haro, en Calle de Genova.
Sem data de edição no rosto, a primeira epístola "dedicatoria, respuesta, introduccion, y aviso general para todos: que de la tela de mis papeles puedo hacer el sayo, que me diesse la gana." termina "Hoi estamos a 15 de Noviembre, y io estoi en Almeida de Portugal; el año es el de 1734.". Intressou-me em particular que Diego de Torres Villarroel, pícaro ilustrado e sábio castelhano do século XVIII, que por cá andou alguns anos em exílio indigente e editou alguma da sua obra jocosa em Coimbra, tenha escrito este panfleto em Portugal(4).
Villarroel era um dos dezassete filhos do proprietário de uma "venda" de livros em Salamanca, onde cursou matemáticas; estava então umbilicalmente ligado ao estranho e alucinante mundo da circulação e produção de uma literatura e cultura específicas, cujo estatuto é o que interessa identificar. Ao longo da década em que Villarroel escreve o seu Medico para el bolsillo e durante as seguintes, uma intensa produção de almanaques, prognósticos e jocoserias é protagonisada por alguns sábios intelectuais portugueses, Victorino José da Costa, António Correia de Lemos, José Félix Henriques Nogueira, Joaquim Henriques Fradesso da Silveira, Luís Travassos Valdez(5).
Todos se ocultam sob invocações sinuosas, Pescador, Sarrabal, Cosme e Damião, em que se surpreende uma tradição jocosa e pícara imemorial que se passeia na senda dos "cegos" por todo o território hispânico e pela Itália. Surpreende, em especial, o precurso de trocas detectado no mero registo e seriação das oficinas editoras; os Lopez de Haro editam ainda na década de cinquenta muitas das peças de um dos mais preciosos corpus da jocoseria portuguesa, cuja maioria é composta em oficinas catalãs e sevilhanas; trata-se da desgarrada que se precipita em torno das festas promovidas pelo Senado de Lisboa, para festejar a Aclamação do Rei D. José I(6).
Um número apreciável destas jocoserias tem por objecto a medicina e não são fortuitas as invocações de Cosme e Damião. Os lunários e prognósticos do "cego" António Pequeno, um dos mais herméticos "cegos" da jocoseria portuguesa, meros pretextos para assediar a crença e a reputação da medicina e dos médicos e de outros objectos e sujeitos, foram escritos por Victorino José da Costa, sábio beneditino, Grão Pescador, Cosme Francês, Sarrabal Saloyo.
Arrumados então na prateleira das jocoserias, rotulados indiscriminadamente como literatura de cordel, votados à leitura sobranceira dos etnógrafos, estes textos carregam o destino insufragável dos excluídos; ficaram do lado de lá das vedações que defendem o espaço sagrado da cultura erudita, ao lado das facécias e entremezes, nas sacolas surradas dos "cegos".
E ninguém presume que constituem universos literários em que se surpreende uma unidade difícil de refutar e são imputáveis a autores e a círculos produtores também da obra erudita. Que para enunciar o socialmente impronunciável, inventaram as formas da cultura dos excluídos(7).
E ao fazer esta invocação, registo então a unidade indissociável de dois objectos disciplinares. Quero dizer que a cultura que produziu esse eleito objecto que nomeou de "literatura popular" é da mesma espécie da que produziu este retórico e barroco conceito de "medicina popular"(8). Porque a "medicina popular" nasceu com a história da medicina, em Portugal no ilustrado ambiente de Maximiano Lemos, cujo comércio com eruditos como Teófilo Braga, Carolina Michaelis, Adolfo Coelho, me é dispensável explicitar. Neste sentido, a "medicina popular" é um tema romanesco de Camilo que verte nas preocupações eruditas dos portuenses.
O carácter dessa "medicina popular" dos eruditos do Século XIX, fica rigorosamente identificado na reputação que Villarroel confere aos médicos e à medicina institucional e erudita. Identificada com a magia, os ritos e os milagres, as fórmulas esconjuratórias de uma linguagem latina estandartizada e a violência gratuita sobre os corpos, os rituais das posturas e os contenciosos doutrinais - "Todo lo que se disputa se ignora; casi todo en la Medicina se disputa, luego casi todo se ignora." -, a medicina erudita parece comungar com os géneros "populares" de todas as práticas que que lhes atribui..
É neste contexto então que se me afigura a distinção entre os dois géneros, no seu estatuto, Medico para el bolsillo. Doctor a pie; uns a pé e outros bem montados, ou espreitando esquiva e gravemente por detrás das cortinas de uma carruagem. Para lá desta distinta forma de locomoção, reputam-se mutuamente das mesmas práticas. O "médico popular" tem o estatuto desse "cego ambulante" inventado pelos eruditos para a assumir a autoria do objecto cultural excluído, a jocoseria, a facécia, o entremez, o prognóstico.


Notas

(1) A Literatura Médica até ao fim do Século XVI, in História da Literatura Portuguesa Ilustrada, dirigida por Albino Forjaz Trigueiros, III volume, Lisboa, 1932.
(2) Dialogo da Perfeyçam e partes que sam necessarias ao bom medico. Dirigido ao muyto alto & serenissimo Principe Rey Dom Sebastião, primeiro deste nome. Nosso Senhor. Em Lixboa Per Joam Alvarez impressor delRey. Anno de MDLXII.
Na dedicatória diz-se: "Achou este dialogo Afonso de Miräda contador do reyno & casa de V.A. entre os livros & papeis de seus filhos, q estudarä as artes liberaes & medicina, em Coimbra, & Salamanca, & em outras vniversidades: & lho fez trasladar de Latim em linguagem (...)"
"O author o nam quiz imprimir em sua vida, por nam tomar tam grave carga sobre seus hombros, en publicar dialogo contra a medicina deste tempo."
(3) Silva Carvalho, a quem especialmente chamou a atenção o facto de a obra ser impressa em Castelhano e que perdera já algumas páginas a discorrer sobre o Leal Conselheiro de D. Duarte como literatura médica, remata a propósito do Dialogo da Perfeyçam:
"Desta maneira o Dialogo da Perfeyçam que pode interessar à História da Medicina, näo vale como documento de importância no estudo da Literatura Médica Portuguesa."
(4) O Século XVIII, mais ainda que o XVII ou XVI, produziu uma literatura e uma cultura que aplicou o seu génio à invenção dos futuros objectos da "literatura popular" e de outros géneros de culturas excluídas. Porque não envolveu os autores que podemos identificar na área pícara castelhana, Calderón, Vega, Tirso de Molina, Cervantes, Zabaleta e outros, foi votado ao desinteresse pelos investigadores e o universo é ainda bastante confuso. Mas bastara tomar como tema o vasto panorama que se reúne em torno da invocaçäo do Grand Piscator Sarrabal de Milán e de Villarroel, o Grand Piscator Sarrabal de Salamanca, no que diz respeito à produção de Almanaques e Prognósticos "metafóricos" para avançar sensivelmente na compreensão desta ocorrência.
Quanto à ocorrência específica de prognósticos e lunários, género que tenho que associar à divulgação da imagem e reputação de um certo tipo de médico, posso legitimamente suspeitar de um êxito notável do género em fases cronológicas bem determinadas. Entre 1605 e 1615, 1645 e 1660, num universo que mobiliza ilustres editores como os Craesbeck, António Alvarez e João Alvarez de Leão e curiosos autores como Manoel Gomes Galhano de Lourosa.
Depois no Século XVIII, pelas décadas de quarenta e cinquenta, mobilizando os autores atrás identificados e num contexto jocoso bem mais explícito.
(5) O universo da produção destes autores é nebuloso e é com grandes dispêndios que se organizam conjuntos em torno de cada um. Os bibliófilos e bibliógrafos dão notícias pouco consistentes, filiadas numa tradição difusa a mor das vezes. Victorino José da Costa, já identificado por Barbosa e Inocêncio como Cosme Francês, posso conectá-lo, sem dúvidas, com outros pseudónimos como António Pequeno e ainda com alguns "cegos" anónimos que intervêm na desgarrada que cito de seguida. Nunca se sabe, porém, quando outro se apropriou deles, mesmo só para invocar a continuidade no seio de uma desgarrada, ou de uma porfia. Inocêncio diz, sem justificação consistente, que o editor António Correia de Lemos é Damião Francês; eu encontro grande continuidade entre Damião Francês e Cosme Francês.
Expressamente de Cosme Francês e sobre matéria médica, vale a pena ler Remedios Stoico Christãos para lograr a srenidade de animo, passar a vida alegremente, e vencer sustos, medos, e perturbaçoens, e outros accidentes de que nascem enfermidades incuraveis. Receitados e preparados na Botica Filosofico-Moral de Cosme Francez, Mathematico, e Boticario, Lisboa OCIDENTAL MDCCXXXXVII., em notável conjunção com escritos de Villarroel.
(6) Como forma ainda de constituír uma ordem neste universo nebuloso, proponho a reflexão sobre os critérios com que foi coleccionado nos séculos XVII e XVIII e incorporado em volumes e miscelâneas. O facto de muitas destas peças aparecerem de forma reincidente agrupadas em colectâneas, dá-me ensinamentos insubstituíveis.
Desta desgarrada posso formar uma ideia sintética porque alguém reuniu os panfletos num volume coevo, Novo Reservado nº 1375 da B.P.E.
(7) Trata-se de uma área de produção erudita dos objectos de uma cultura excluída; e, à partida, pensar-se-ia identificar aí a forma como a sociedade a representa. Penso, porém, que se trata de uma forma mediatizada de enunciar como se representa, para si própria, a cultura erudita. Se quisesse utilizar uma solução ou nomenclatura fácil e precipitada, trataria de ''crises de descrença''; agrada-me mais tratar de esconjura.
No ambiente da sociologia histórica francesa, de Bourdieu, Chartier, Revel, etc., o assunto tem recebido desenvolvimentos que tenho que assinalar, ao abrigo de um tema a que não reconheço qualquer sentido, "literaturas de grande circulação"; pelo que não me satisfazem ainda. É a razão por que o esboço de problematização que tenho em referência é uma comunicação, Littératures de large circulation au Portugal (XVIe - XVIIIe siècles), de Diogo Ramada Curto in Imprimés de Large Circulation et Litérature de Col Portage, Março de 1991, Wolfenbuttel, Alemanha.
(8) - Numa alocução que proferiu no Hospital de Santo António em 26 de Novembro de 1960, em homenagem a Maximiano Lemos, Luís de Pina retrata soberbamente o ambiente de comércio intelectual entre os sábios do Porto, à roda da Sociedade de Instrução. O elenco de nomes que Luís de Pina põe em conjunção, intervindo num mesmo programa de saber, é por si só lapidar: José Frutuoso Aires de Gouveia Osório, Joaquim de Vasconcelos, Carolina Michaelis, Teófilo Braga, Adolfo Coelho, Pinheiro Chagas, Consiglieri Pedroso, Agostinho de Sousa, Bento Carqueja, Ricardo Jorge, Hernâni Monteiro, Joaquim Alberto Pires de Lima. Os objectos culturais deste universo intelectual são património, também, da história da medicina e da cultura médica portuguesa.
Podemos surpreender a operação de construção disciplinar da "medicina popular" no conjunto da obra de Maximiano, de Hernâni Monteiro, dos Pires de Lima, ou de Silva Carvalho como estudioso emprrendedor dos ofícios dos "práticos", barbeiros, sangradores, cirurgiões "ambulantes", parteiras. Recomendo uma prospecção especialmente atenta no Arquivo de Medicina Popular, edição do Jornal Médico, Porto, 2 volumes orientados por J.A. Pires de Lima e Mendes Corrêa, 1944/5. E ainda em Ensaio de Folklore Médico Analítico, de Luís de Pina, Porto, 1932; Os Remédios Imundos na Medicina Popular, do mesmo, comunicação ao XV Cngresso de Antropologia e Arqueologia, Lisboa, 1930; Mezinhas e Remédios de Segredo, de Silva Carvalho, Lisboa, 1928; na apresentação da reedição que este fez de Prodigiosa Lagoa Descuberta Nas Congonhas do Sabará, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1925; e ainda em Origens da Cirurgia Portuense, de Hernâni Monteiro, Porto, 1945.
Num outro contexto, de Costa Santos Sobre barbeiros e sangradores no Hospital Real de Todos os Santos, A. H. M. P., Porto, 1922; e de Silva Carvalho Os cirurgiões urologistas ambulantes em Portugal e Espanha, Lisboa, 1930.


II
Como os géneros se identificam nas suas intervenções sobre os corpos.

Que testemunho então invocar mais sábio do que os próprios corpos, esses que, mesmo quando radicalmente estranhos às porfias entre os géneros, enfrentaram pacificamente como objectos o suplício das práticas?
Tistam da Cunha e Mello, e Athaide, fidalgo muy conhecido neste Reyno pella illustre ascendencia de seus progenitores, sobindo em hua mula, Domingo às cinco horas da tarde a vinte e hun de Junho de 1620, se lhe impinou, e querendo elle saltar della, por se livrar do perigo em que se via, cahio em Terra, levando diante a mão esquerda, por que sustenteandose nella, livrasse a cabeça e corpo. E soccedeo por no braço tanta força, que dislocandose o osso do sangradouro, sahio fora, fazendo hua ferida transversal pella parte de dentro, que rompeo, e dillacerou veas, arterias, muscullos, tendães, e ligamentos.
Acodirão dous Chirurgiães, e hum algebrista, que acazo se acharão, e reduzindo o osso, que era o que desce do ombro, cozerão a ferida como convinha; chegamos a este tempo, e vimos o braço todo contuso, e junto à mão pella parte de dentro de cor livida. O Algebrista em alta voz disse, que por este lugar tinha quebrados ambos os ossos (a que os Anathomicos chamão ulna, e radio) provando esta opinião com o publicar, advertimolhe o contrario com razões, e demonstrações, que a evidencia fazião verdadeiras, não se dissuadio.
A ferida se curou com hua estopada de clara dovo, forrada com hum paninho do seu tamanho, e hum sobre panno de vinagre destemperado, e ligadura retentiva; e junto a mão, na parte que o Algebrista tinha por quebrada, se puserão duas estopadas da mesma clara, cubertas de pós restrictivos com sobrepanno, e ligadura, molhado no mesmo vinagre. O enfermo despido se deitou na cama, e o braço se colocou no sitio que convinha.
Neste tempo estavão ja presentes alguns medicos, dos mais doutos desta corte. Duvidouse sobre o que tomaria pella boca, a huns pareceo pós contracaso em agoa de tanchagem, a outros pós de bolo armenico preparado com agoas de pés de rosas, e xarope de rosas secas misturado, venceose que tomasse assucar rosado com agoa fria, porque só isto tomaria o enfermo, e não cousa de botica, e passadas duas horas se sangrasse no braço direito na vea darca, servindolhe de cea hum doce, e agoa fria, e que este podia ser marmelada, perada, ou assucar rosado.
O dia seguinte o visitamos, e nos informarão que passara a noite com grandes dores, e sem quietação algua, queixavase de as ter em todo o braço, pareceo a todos que se sangrasse, que tomasse hum caldo de galinha, e que se a cura se não subisse até à tarde se veria; tratarão os seus, se o poderião passar da casa em que estava pera outra melhor, vimola, pareceonos muy avantajada para a saude, e viemos na mudança.
Na visita da tarde achamos que depois de se mudar, posto que se tinha feito com muita cautela, e sem prejuizo, nem dores, tivera hum desmaio, e passado elle desvariara por vezes, não conhecendo a nenhus que com elle estavão, e isto lhe duraria hua hora, e passado ficou como dantes, mas muy inquieto, mudando a cada passo o sitio do corpo, e braço, e não achando em nenhum quietação, tinha febre, ordenamos curalo estando presentes cinco medicos, cinco chirurgiães, e hum algebrista, desligarãose as attaduras, e tirados os pannos, vimos o braço em partes de cor livida, e muito mais na que o Algebrista tinha por quebrada, que vista por todos se julgou o contrario, a ferida estava ao parecer unida, e a circumferencia sem tumor, nem inflamação curouse fomentando o braço com azeite rosado, e de mortinhos morno, e estopadas de claras dovos, e sobrepannos de vinagre; depois disto nos ajuntamos noutra casa para se tratar da enfermidade, e do que convinha a ella, e tratouse com muita ponderação, letras, e prudencia à vista de parentes, e criados do enfermo, o grave caso que tinhamos entre mãos, e o perigo que prometia não só a parte, mas ao todo, porque como as arterias são o caminho por donde vinha a vida ao braço, as veas, o mantimento de que se sustentava, e os nervos, e muscullos, o por onde vinha o sentimento, e movimento; estando a maior parte disto cortado, e dillacerado, ficava propinquo o receio de se mortificar o braço, e o perigo que comsigo trazia a mortificação de hum membro, e tão vezinho do coração. Estando todos nisto, se ordenou que tomasse hum cristel ordinario, e que depois de se prover, se sangrasse na vea darca, e comesse dieta, e se fosse caldo de lentilhas, seria mais proveitoso.
E me perdoe o leitor a necessidade absoluta de enxertar aqui este excerto; e de o deixar no limiar do suplício lancinante da mortificação e amputação, da gangrena, das sangrias e purgas em sucessão alucinada. Porque o que me interessou foi a presença discreta do algebrista, assistindo atónito à teimosia e às porfias de médicos e cirurgiões.
A Relaçam Chyrurgica de hum cazo grave a que se succedeo mortificarse hum braço, e cortarse com bom successo, de Francisco Guilherme Casmack, é uma das obras primas de um género que começa a ocorrer com abundância nos princípios do Século XVII e impregna já o estilo das Centuriae de Amato(1). A peça mais eminente, mesmo pelas condições em que ocorre, é Observaçam do Achaque que Sua Real Magestade Dom João IV teve en Salvaterra, de que livrou milagrosamente (...), de Francisco Morato Roma(2). Mas o conjunto mais sábio é o que resulta, no Século XVIII, da porfia entre Bernardo da Silva Moura e José da Silva d'Azevedo, que transporta para o âmbito do desacato erudito a forma explícita da jocoseria e, por isso, é obrigado a expor nuamente as práticas e a descrença na sua legitimidade(3).
O estatuto destas obras, que constituí em género sob a nomenclatura de "narrações" ou "relações", é múltiplo, abarcando a porfia que se firma na narração da enfermidade e decorrente diagnóstico, ou proposta de tratamento e narração da intervenção clínica ou cirúrgica; a relação didáctica com a mesma estrutura narrativa; ou uma espécie de celebração do êxito clínico, em que é comum a intervenção de outros factores, mágicos ou milagrosos, como é o caso da Observaçam do Achaque em que o Rei livra milagrosamente, por interposição das "velhas" e da Senhora da Conceição. Caso raro, ou talvez único, é o que publico em anexo e serve de habilitação a uma petição ou pretensão (Anexo 2).
Interessa-me dizer que muitas destas narrações parecem decorrer da prática hospitalar, espécie de exempla didácticos, que caracterizam uma fase e uma área específicas da história das práticas médicas. E são patentes do permanente contencioso entre médicos e cirurgiões e entre eles e os práticos hospitalares, oficiais da "meia cirurgia", algebristas, parteiras, etc..
De qualquer forma interessam-me como os mais sábios vestígios das práticas médicas e da dissociação radical e assumida entre a retórica disciplinar e as práticas. E sobretudo por uma espécie de contradição endémica de que todas enfermam, porque o contexto que se insinua na narração da enfermidade e dos sintomas raramente legitima o diagnóstico e a opção pelas práticas clínicas e cirúrgicas. Para mais, porque entrou em voga o costume das "juntas" ou "assembleias" compósitas de médicos, cirurgiões, sangradores e algebristas em torno do enfermo, as práticas sucedem-se em ritmo alucinante de contradição, conforme a avaliação que os diversos partidos fazem do curso ou mesmo natureza da enfermidade.
O que ressalta de todas estas narrações é que nada demarca o que narram das práticas que à medicina são imputadas pelos círculos jocosos, de maneira que muitas se confundem, no estilo e na forma, com as melhores caricaturas. É sobretudo nelas que melhor se surpreende o universo dos rituais que legitimam toda a violência sobre os corpos; a linguagem hermética que, para lá do mais, distingue os vários corpos intrometidos no caso, médicos e cirurgiões, anatomistas, sangradores e algebristas; as assembleias de contencioso ou de consenso que cercam o enfermo numa teia de que jamais se desprende; a precipitação do caso clínico na sua culminância, que não deixa ao infeliz alternativa, senão a submissão a mais intervenções clínicas e cirúrgicas. Pois não eram estes os tópicos do libelo de Villarroel?
A Tristão da Cunha mortificou-se um braço, que depois barbaramente se amputou com bom sucesso, para não legitimar a sentença de um algebrista que, renitente, sustentou até ao fim que o rádio e o cúbito estavam quebrados; todo o texto de Guilherme Casmack é estruturado para atestar aos parentes e criados do enfermo a irreversibilidade do desfecho.
O "pituitoso" que caíu nas mãos de José da Silva d'Azevedo e dos que com ele intervieram foi sangrado da cabeça aos pés, purgado em ritmo alucinante e acabou por livrar depois de manipulado durante vinte e oito dias... e noites, coberto de escráfulas e antrazes; e depois ainda de uma intervenção cirúrgica a um joelho, ficou coxo(4). Mas, de verdade, o que Bernardo da Silva Moura queria era ainda sangrá-lo na veia da salvatela.
Num diagnóstico que José da Rosa Correia, irrequieto médico de pacense do Século XVIII, reuniu a uma valiosa colecção, surpreendi outro caso exemplar, todavia mais astuto. (Anexo 1).
Foram ainda as preocupações surpreendentes deste quesilento médico de Beja que me proporcionaram a insubstituível leitura da narração e dos dois atestados diagnósticos da enfermidade do Beneficiado António Pedro de Andrade Lima, que reputo como o melhor testemunho e o mais indignado libelo que pude servir ao leitor (Anexo 2).
E para terminar arrimado aos géneros literários que celebro e quero celebrar, peço a atenção para a nota nº1 da página 66, do magnífico manual de Hernâni Monteiro Origens da Cirurgia Portuense; e sobretudo para a credulidade, que não me parece irónica, com que a inseriu (Anexo 3).


Notas

(1) Relaçam Chyrurgica de hum cazo grave a que succedeo mortificarse hum braço, e cortarse com bom successo, por Francisco Guilhelme Casmack, chyrurgião del Rey e do seu Hospital. Impresso em Lisboa por Geraldo da Vinha, em 1634.
(2) Observaçam do Achaque que Sua Real Magestade Dom João IV teve em Salvaterra, de que livrou milagrosamente. Em lingoagem para assim os grandes como os piquenos (...), folheto de 26 páginas sem editor de 1665.
(3) Esta porfia, a que farei referência adiante, pois transporto-a para o contencioso conspirativo entre médicos, cirurgiões, algebristas e sangradores, tem como peças axiais Escrupulos Medicos e Reparo Chyrurgico por Narbedo Sávil sangrador aprovado, a hum Medico intrometido, na Oficina da Congregação do Oratório, Lisboa, 1739; Exposiçäo Delphica, apologetico-critica, em que se convence uma falsidade, com a verdade declarada, e se propõem varias doutrinas, pertencentes à Sciencia Medica, por José da Silva d'Azevedo e na Officina de António Pedro Galrão, 1739; Dissertação Medica ilustrada, ou sangria da salvatella defendida (...), por Bernardo da Silva Moura, na Oficina da Congregação do Oratório, 1739.
As intervenções de Bernardo da Silva Moura, médico da Câmara do Infante D. Afonso, que usa o pseudónimo de Narbedo Sávil e se apresenta como sangrador, são do domínio da jocoseria mais ilustre e fazem a conotação erudita com o texto da narração de Azevedo.Note-se ainda que saem dos prelos do Oratório.
Não posso fazer referência a esta porfia, sem invocar outra em que as trocas entre o género da narração e o da jocoseria são notáveis. Carta Apologética, Sobre A Necessidade De Practicar Remédios Purgantes, Em toda a sorte de Febres Eryzipetelosas; e nas que são biliosas, podres, ou malignas, não só se devem practicar estes logo no principio, mas algumas vezes antepôr o vomitório, com as condiçoens que acautelão os Practicos. Escripta a hum Professor da Arte, amigo do Author. Lisboa, Na Officina de Jozé Aquino de Bulhoens. Anno de MDCCXXXI.
(4) Não resisto a deixar aqui o testemunho de Narbedo Sávil.
"Porem o certo he, que se então fez ruido a muitos, hoje me parece, que o faz a todos, pelo prodigio com que este homem se livrou, ainda que coxo se restituiu: e se não mostre-se, ou individue-se em observação autentica hum doente muito melancolico, pituitozo, hipocondriaco, com laivos de escorbutico, com grande apparato viciozo no mesenterio, com humores azedos, austeros, e crassos, coagulados, turgentes, supernatantes, com muitos soros, com febre lymphatica, branda, com lingoa grossa sem muito recesso do estado natural; com agoas cruas e delgadas ate o setteno; em que apparecerão com algum cozimento, o que em dia nono persistia; sangrado desde o principio 23 vezes, com o sainete de humas sanguessugas, com dores rheumaticas, com dores vagas sem persistencia; purgado em decimo dia de manham, e por mal succedido, ainda que ajudado, de tarde outra vez com o mesmo successo repurgado, tempo em que alem de huma dor fina nas costellas mendosas, que se refere, estava totalmente impedido de fazer qualquer movimento; ajudado com ajudas, e algumas laxantes, quasi sem conto; com exhibiçoens de leite quasi sem fim; e por fim purgado e tatarapurgado, mas por coxo conhecido; mostre-se, digo, doente que tivesse semelhante doença e que livrasse della, ainda que coxo, com vida, sendo curado, como se afirma, "conforme à prática, que em poucas palavras adevertiu Baglivio". Responde stulto?"



III
Médicos e cirurgiões, sangradores, barbeiros e algebristas.

No Prefácio a uma obra que deixou infelizmente manuscrita, Francisco de Souza, médico da casa do Bispo de Beja Frei Manuel do Cenáculo e por ele encarregue de um projecto de extensão dos serviços médicos aos pobres e rurais do bispado, organizou em estilo eminente o contencioso que me permite ir mais além na identificação dos objectos da "medicina popular"(1).
"Não podendo ver sem desgosto a falta de secorros, em que as mais das vezes, nas suas molestias se achão, os disgraçados moradores do Campo; esta prossão laborioza de Cidadãos, a mais precioza e util à Sociedade; que não podendo com facil promptidão ser secorridos por Medicos, pelas grandes distancias, que muitas vezes os separão destes, sendo precizados a procurarem os seos secorros, em mediocres Cyrurgiões, que faltos da necessaria instrucção de Medicina, que não aprenderam, confundem esta arte com a experiencia, e esta com a arte que ignorão, precipitando ordinariamente o doente, com a impricia aplicassão de remedios, de que igualmente ignorão as qualidades, e as virtudes; mas que contudo abonão com a experiencia, me determinei a escrever esta pequena obra, na qual coligi os principios de Medicina pratica, tão essencialmente necessarios, aos que fazem profissão da arte de curar; os quaes extrahi de alguns dos melhores Autores; para facilitar a impossibilidade em que os dictos Cyrurgiões estarão de os poderem ler, ou porque seijão muito diffuzos, ou porque seijão escriptos em lingoagem estranha, e que não entendão."
Para explicitar as razões deste verberativo pórtico, o Doutor Francisco de Souza deambulará logo a seguir pelos meandros de uma retórica indiglutível e difusa, em que os princípios comuns da medicina erudita, no seu estádio galénico, são despejados numa síntese redutora que se tornou comum quando a enunciação das doutrinas tradicionais tinha já perdido o suporte de toda uma cultura e mentalidade que lhe dava contexto.
Nenhum barbeiro seria capaz de daí extrair o que quer que fosse para lhe servir na prática do ofício cirúrgico, senão que passaria a engalaná-lo com os artifícios de um discurso pomposo que atribuiria às suas intervenções uma legitimidade que, afinal, sempre houveram tido.
Ora a questão, a razão do meu interesse por este insignificante episódio, é que a história da medicina, no que concerne à identificação dos objectos da "medicina popular", nunca resolveu uma imprecisão estrutural ou ubiquidade. E transportou, para o próprio universo dos temas que consagrou, essa própria contradição sem dela assumir a consciência mesmo preliminar.
É que a "medicina popular", tal como a pratica a história da medicina, é um espaço ambíguo que quer fazer comungar da mesma natureza tanto as atitudes rituais, mágicas e esconjuratórias, que não são medicina pois não propõem qualquer intervenção sobre os corpos, com uma série de intervenções de diversa natureza operativa que uma legião de práticos sem formação escolar institucional distribuem por uma diversidade de ofícios e são o resultado de um processo de conhecimento empírico mais ou menos estruturado.
Tornou-se porto de honra da história da medicina em Portugal e em Espanha um bizarro raciocínio, cuja compreensão nos exige ainda o recenseamento do contexto em que os médicos do Porto construíram a disciplina(1).
Os médicos historiadores do Porto estavam, com excepção de Ricardo Jorge, umbilicalmente ligados à cirurgia e à anatomia e invocavam uma genealogia que os amarrava à Real Escola Cirúrgica do Porto e ao Hospital de Santo António. O primeiro titular nomeado para a cadeira de História da Medicina, João Monteiro de Meira era cirurgião e anatomista e foi director da morgue do Porto; faleceu antes de se prover no lugar e substituíu-o Maximiano Lemos, também anatomista ex-director da morgue. J. A. Pires de Lima era anatomista e cirurgião, bem como Hernâni Monteiro. Quando Maximiano Lemos escrevia a História do Ensino Médico no Porto, era ainda a cirurgia que celebrava.
Do ambiente erudito que se constituíra no Porto sob a égide da herança de Camilo e dos da geração de setenta, os médicos historiadores haviam recolhido a estrutura narrativa que daria corpo ao seu discurso ideológico. Era singela; uma tenebrosa conjunção do estado de antigo regime com a Igreja e a Inquisição determinara um atraso irreparável da ciência e da prática médicas em Portugal, quer promovendo toda uma estrutura tradicional de espontâneos no exercício dos ofícios médicos ou mágicos, quer perseguindo humanistas e cristãos novos, considerados como os eventuais renovadores da disciplina e do ofício.
Um empreendimento estruturado por parte das camadas dirigentes havia investido na dissociação crescente entre os intelectuais e as camadas populares, de forma que torpedeava mesmo a acção educativa e pedagógica que os sábios deviam ter na formação dos oficiais espontâneos ou sem formação e aptidões reconhecidas(2).
Denunciava-se a conjura dos Cirurgiões e Físicos mores, que promoviam exames desqualificados para tornar fácil a integração de barbeiros, sangradores, algebristas, meios cirurgiões e parteiras no tecido institucional. Mas o que a História da Medicina não explicita é que a maior parte deles, sobretudo dos cirurgiões, haviam já sido sangradores ou barbeiros e depois meios cirurgiões(3).
O tema crucial então da história da medicina em Portugal, aquele que confere objectos específicos à "medicina popular", é o das cartas de exame; é a análise de um auto ou termo de exame de um sangrador de Guimarães, que serve a Maximiano Lemos como ''medium'' narrativo para explicitar, em História do Ensino Médico no Porto, o atraso e o cunho "popular" ou rústico da medicina no Porto ainda no Século XIX. "Tais exames, tal medicina".
Mas o tema de que os barbeiros, que operam sobre os cadáveres no teatro anatómico enquanto o mestre papagueia na cátedra regendo a demonstração, sabem mais de ossos, músculos e orgãos do que qualquer médico ou cirurgião, que é o quadro legitimador da Fabrica de Vesalio de que a história da medicina se apropria, contém em si todas as marcas destas ambiguidades e contradições.
A história da medicina decide conforme lhe convém, se este experimentalismo é um factor de bloqueio à identificação da medicina institucional como o terreno da afirmação de uma disciplina e uma prática científicas, ou pelo contrário aquele que promove tenazmente a exclusão dos retóricos dissociados das intervenções concretas.
É no seio destas indefinições, que se organiza o contencioso surdo e conspirativo entre médicos e cirurgiões. Na maior parte dos textos que apresento, quer em anexo, quer em nota, este contencioso é explícito quanto convém(4).
Porque o que me interessa são as operações a que, na crista deste contencioso, uns e outros, médicos e cirurgiões, se entregam para excluír ou fazer dele participar, conforme a conjuntura, todos os outros oficiais das artes médicas.
Ocorre-me finalmente citar um mais que sábio raciocínio de J. A. Pires de Lima em Epítome de História da Medicina Portuguesa.
"Com exagêro, diz Maximiano Lemos: "A Reforma executada em 1772 pelo Marquez de Pombal marca talvez a página mais brilhante da nossa história literária.
(...) É certo que da Reforma resultaram grandes benefícios, entre os quais avulta o grandioso Jardim Botânico que, ainda hoje, é uma glória para a Universidade de Coimbra.
Mas a má escolha do professorado, as agitações políticas, a incompetência dos governos, o recrudescimento de abuzos fizeram com que falhassem, em grande parte, as esperanças de levar Portugal à altura das nações mais adiantadas.
Näo foi em Coimbra, com a famosa Reforma Universitária, mas sim no modesto Curso de Cirurgia do Hospital de Todos-os-Santos, que um simples barbeiro conseguiu criar, pela primeira vez, uma escola anatómica portuguesa, que depois irradiou para Coimbra, para o Pôrto, para a Bahia, para o Rio de Janeiro."(5)

Este simples barbeiro, Manuel Constâncio, a quem Augusto de Castro chama apropriadamente o ''Pareo Português'', ficou, todavia, do lado dos simples, acompanhado das velhas, comadres, alveitares, enfim a turba infindável dos protagonistas silenciosos da "medicina popular"(6)


Notas

(1) Este raciocínio, que confere aos barbeiros, algebristas, sangradores e parteiras a responabilidade por todos os bloqueios à afirmação de uma prática médica "científica" em Portugal e Espanha, intrometeu-se de tal forma nos critérios e no discurso da história da medicina, que amarra completamente um estudo que poderia ter sido magistral, Some remarcks on the social and professional status of phisicians and surgeons in the iberian world, 16th-18th century, de C.R. Boxer in Revista de História de S. Paulo, Vol.L, tomo 1, 1974.
Para caracterizar este problema, tornam-se ainda indispensáveis as leituras de Contribuição para a História das Ciências Médicas em Portugal: O Hospital Real de Todos os Santos, de Alfredo Luís Lopes, Lisboa, 1890; Sobre Barbeiros e Sangradores no Hospital Real de Todos os Santos, de Santos Costa in Arquivo de História da Medicina Portuguesa, XII, 1922; Os Cirurgiões Urologistas Ambulantes em Portugal e Espanha, de Silva Carvalho, citado; Físicos e Cirurgiões Quatrocentistas; As Cartas De Exame, de Iria Gonçalves, in Do Tempo E Da História, Vol. I, 1965.
Transportando a questão para o contexto da facécia, mas particularmente arguto, Allegação medico-legal sobre a defensa de João Pinheiro Pereira Coutinho accusado por curar sem ser formado na Universidade de Coimbra, nem pera isso ter licença do Fysico mor do Reyno, e Casa., anónimo impresso por João Couceiro de Abreu em Lisboa. 1721.
(2) - A partir do Século XVII, começa a circular uma série de tratados que tentam ordenar o exercício destes ofícios; porém, ao contrário do que a História da Medicina faz presumir, a maior parte deles é escrita por oficiais, ou ex-oficiais dos respectivos ofícios.
É o caso dos manuais para barbeiros e sangradores: de Manuel Leytão, Practica de Barbeiros, Lisboa, 1604; de Ferreira Roque, Tractado de Phlebotomia, Évora, 1722; de Leonardo Pristo da Barreyra, Practica de Barbeiros phlebotomanos, ou Sangradores reformada, Coimbra, 1719; e ainda os de António Gomes Lourenço e Manuel José da Fonseca. Um elenco semelhante se poderia citar para os algebristas, parteiras, ou mesmo boticários.
Obras como a Luz da Medicina de Mourato Roma, ainda se podem considerar destinadas a ilustrar e dar formação médica elementar aos práticos, do ponto de vista, agora paternalista, dos médicos eruditos. Uma leitura sistemática da Luz da Medicina, obriga-me a interrogar sobre o que distingue estes tratados do Thezouro de Prudentes, ou mesmo do Thesaurus Pauperum.
(3)
(4)
(5)
(6)


ANEXO 1


Biblioteca Pública de Évora
Códice CXXXI/2-23

Peça nº 1


Pasta com documentos do espólio do Dr. José Rosa Correia.

Conselho pera D. Brites filha de D. Martins Vargas da villa de Estremoz. dado em 28 de Janeiro do anno de 1650.

A causa immediata deste achaque he obturação do vaso regio,ou/ bexiga de fel, que não dá lugar a recolherse este excremento/ no dito receptaculo, o que he occasião de retroceder às veas, e in/ficionar toda a massa do sangue, e daqui nace a cor amarela/ dos olhos e do mais corpo.//

O que tambem se vê no excremento da ourina,que será nesta senhora algun tanto/ açafroado, e não duvido que a camara que fizer seja esbranquiçada,/ e sendo he sinal que ambos os orificios da bexiga do fel estão opilados./ Esta em summa he a naturesa deste symptoma novo, que como fica dito,/ se chama jetericia./
A cura delle consiste em abrir, e reserar, e expurgar a dita opilaçao,/ o que se pudera ter feito, se a senhora d. Luisa (… margem, Brites) se mostrara mais obediente/ aos senhores Medicos. O tempo presente favorece pouco nosso intento,/ comtudo a urgencia do achaque, e cuidado com que esta senhora está, não dá/ largas treguas./
Sou de parecer que esta senhora aceite 2as sangrias, cada huma de 5 onças de/ sangue, primeiramente no pé direito e vea da madre a primeira, e a 2a no/ pe esquerdo,e em cada huma dellas se proveja a senhora d. Brites de camara/ huma hora antes, ou seja obra da naturesa, ou per via de cristel commum/ purgativo./



ANEXO 2

Biblioteca Pública de Évora
Códice CXXI/2-23

Peça nº 21


1. (Atestado pelo médico Ignacio Tamgnini, da doença do Beneficiado António Pedro de Andrade Lima.)

Ignacio Tamagnini Medico nesta cidade. Certifico que muitos anos há, eu fui/ consultado pelo Reverendo Beneficiado Antonio Pedro de Andrade Lima, rezidente então no/ Convento de Jesus, pera humas queixas antigas, e rebeldes scorbutico-hipocondriacas, que desde/ a sua mocidade padecia. E propondolhe os genuinos e efficazes socorros da arte diligente,/ em oppozição ao methodo meramente humectante, palliativo vulgar, e precario, com que/ fora sempre preposteramente trattado, encontrei os obstaculos todos invenciveis da preo/cupação de hum temor pannico, e da ignorancia interessada, a que forçozamente cedendo fui/ constringido abbandonhalo inteiramente ao seu antigo desconcerto, e a sua sorte; athe que pas/sados mais alguns annos depois de o perder de vista, novamente fui instigado a vizi/talo na Rua de S. Jeronimo de Bellem, aonde o achei entrevado em huma cama, ja tam/bem de annos, com as extremidades inferiores contrahidas, e calcanhares pegados nos/ lombos; as articulações erão disformes endurecidas de ankiloses enormes specialmente/ nos joelhos, o ventre timpanitico, e duro, quanto hé pssivel, inobdiente às suas excre/sóes, o rostro atrophico, febriculoso, e marasmado deploravelmente nestes termos lasti/mozos, lembrado elle dos meus anuncios, e asserçoes antigas, e esperançado eu das/ omissões, impropriedades, e negligencias passadas mais ainda, do que da apparente/ possibilidade, de reparar já tão grandes dezordens, e progressos,, entrei rezoluto, e/ compadecido, em huma cura, qual prescrevem os principios solidos da verdadeira/ sciencia Medica (muito mais fecunda em successos, e util aos homens do que opina a/ descuriozidade indolente, e a impericia) e em premio dos mais profiados, e continuos/ esforços obtivemos, mediante os influxos de hum Ceo propicio: eu o gosto delicado/ que rezulta de huma boa acção; e o infermo o bem incomparavel da sua saude, resti/tuida a hum estado de firmeza, que jamais lhe foi concedido, na milhor, ou mais/ vigoroza parte da sua vida. E por isto tudo ser verdade, passei a prezente certi/dão por me ser pedida, attestando o seu contheudo, se necessario for de baixo de/ juramento. Lxª em o 1º de Novembro de 1776./
(ass:) Ignacio Tamagnini.//

2.(relato da doença.)


Rezumo da molestia do/ Benefeciado Antonio Pedro de/ Andrade Lima, principiada á/ trinta e sinco annos; que fez per/suadido por hum curiozo, amante/ da verdade./
Morando no Campo grande, ha trinta,e sinco anos,/ no dia do Equinocio do Outono, vim pelo Sol de todo elle,/ do Estoril athe caza; de noite senti no estomago hua/ pontura vehemente, que a pouco passou, com huns goles/ de agoa ardente; de tarde fluio hum fluxo de sangue,/emorroidal, sem dor, nem ardor; Veio o Medico Pacheco/ do Hospital da Luz, mandoume metter em semicupio,e//

sahindo delle com febre ardente, mandoume sangrar; pa/rou o fluxo com a sangria, ficou febre continua com/ crescimentos agudos; e vindo os Doutores, Medico Santa Ma/ria, e o Medico Lazeiras, não se forão, sem vir de Lisboa Agoa/ de Inglaterra, que me derão logo, e com tres copos, parou tu/do, tanto os crescimentos, como a febre./
Dahi a poucos dias me porgarão levemente, e só/ deitei agoas vermelhas, ou tinturas de sangue, ou da Agoa/ de Inglaterra; dois annos depois me continuarão a refres/car com poderozos, e continuados Refrescos, e athe tomei os su/mos de Borrages, e Xicoria com soro de Leite, que tras Ba/glivio. Nos ditos dois annos me troquei nas cores das mes/mas ervas, recicandome sem a natureza obrar, cheio de/ muitos assaltos, que parecião mortaes, a cada instante, po/is erão convulsos, e expasmodicos./
Nestes termos, me mandou o Doutor Falcão para/ os banhos do Mondego, e o Doutor Santa Maria; e antes/ de hir me mandou Monsenhor Manoel Moreira de Sou/za falar com petição ao Senhor Rey D. João V. de glorio/za, e saudoza memoria: deilhe hua petição para a Patriar/chal, tambem para meio dos despachos de meo Pay, dahi//

a dois mezes deo a molestia no Augusto Senhor, e julguei/ não teria despacho, e apertandome a queixa, fui para/ os banhos do Mondego na companhia de hum Reli/giozo o Doutor Fr. Antonio de S. Boaventura Ferrei/ra do Collegio de S. Jeronimo, que disse em Coimbra/ me tinha levado mais morto,que vivo, em cuja Cida/de entrei donde tinha sahido formado, e em tempo que/ dobravão os sinos pela morte do Senhor Infante D. Fran/cisco acrescentada a molestia, com a imaginação, e re/alidade do que eu via./
Disse Missa em caza à meus Pays, a/ dezasseis de Julho, e dahi por diante o não pude fa/zer pela molestia, que era tão grande, que para consola/ção de meos Pays disse Missa, por ir para Coimbra ãos/ banhos, como quem se despedia delles para sempre./
Os Medicos de Coimbra me mandarão logo abrir fontes,/ o Medico Inglez Pedro Bruni do Porto, hindo eu para/ lá, me queria curar, e mandoume as receitas, em que os/ Medicos de Coimbra não consentirão, por que dizião/ erão activas, mandei fazer Caza de banho no Monde//

go adonde se divide, o Dessa, do Seira, para não serem/ agoas de Linhos. Entrei a deitar as partes quilozas, que/ parecião bocados de arraias insanguentadas, e moncos/ intistinaes, e ao mesmo tempo com fome que parecia Ca/nina: em Agosto seguinte, me fez S. Magestade que Deos tem/ a mercê de despacharme, mandandome por Joao Pedro/ Ludivisse, que fizesse Acttos grandes, entendendo tam/bem que estava en Figueiró de Vinhos com meo Thio/ o Mestre Fr. Caetano de S. Joze Carmelita descalço, e/ que feitos viesse tomar posse do Beneficio prezente, i/gnorando S. Magestade a molestia que tinha, que ao depois lhe disserão./
Eu ja dispensava o despacho, por me livrar do/ martirio meyo para elle, dos Acttos grandes, e em tal estado: e muito mais, porque S. Magestade ja tinha de sobejo/ para escolher os que melhor lhe paressesem; e não/ vindo em termos, era mayor o martirio; com a honra/ destes pensamentos, padecia mais o espirito, e acrescen/tava-se a molestia, que não podia curar-se de repente;/ e querendo os Medicos, Os primeiros de Coimbra, que me//

vezitavão fora de horas, porme nos termos de tomar ponto,/ arbitrarão que fosse primeiro à Villa de Carvalho estar/ com o famigerado Prior Ezorcista para ver se necessitava/ a queixa, daquelle remedio, fui em huma liteira com o meo/ companheiro Antonio Caetano da Rocha, ultimo Bis/po falecido. que foi de Angra; que me levou mais morto/ que vivo: estive nove dias com o dito Prior, e em nenhuma/ parte passei peor, regando a terra com sangue immor/roidal, e prometi a N. Senhora, que deixandome fazer Act/tos grandes, hiria logo outra vez a pagarlhe a promessa/ da minha devoção. Vim para Coimbra, e só to/mar ponto de sufficiencia á quatro de dezembro, e fiz o/ Actto com febre, e em huma Litteira, do mesmo modo fiz/ as concluzoes Magnas, e a sinco de Janeiro tomei ponto/ para exame privado, e a nove do mesmo mez fui outra/ vez a Carvalho cumprir a promessa; no dia seguinte par/ti para Lisboa, achei S. Magestade em S. Vicente na Festa do/ dezagravo, honrou-me em satisfazer-se das minhas car/tas que trazia de Coimbra, que lhe aprezentarão por virem//

limpas, mandoume logo dar posse do Beneficio, e honroume/ com hum recado, que me deo o Conde de Unhão, que fazia/ esquecer todos os trabalhos passados./
Recedi quinze dias, e logo com humor que me sahia das/ fontes, de ambas as pernas; por ser acre, e mordaz fiquei/ aleijado sette mezes com chagas, e erizipélas repetidas; e Jo/zé Ricol o velho mandava fechar as fontes, e o Fizico Mór/ Manoel Dias Ortigäo mandava que as tivesse abertas, e/ veio o Medico Veneziano chamado Carlos Gandini, que a/inda hoje vive em Genova, e me determinou que as fechasse,/ e curou duas grandes eripizelas em ambas as pernas, e a/ picada de hum ramo Arterial, que custou a consolidar./
Ouvia todos os Medicos da Corte por escritto se/paradamente seguia o do dito Medico Veneziano Carlos/ Gandini não só pela experiencia do seu exame, em que/ lhe argumentou o Doutor Joaquim Pedro de Abreu, Me/dico da Camera, mas tambem pela experiencia das suas/ curas, e prognosticos na minha molestia que erão quazi/ infaliveis. Deo-me oleo de Amendoas doces sem fogo por//


muitos tempos, e ás seis onças por cada vez; então tinha/ grandes indegestoes, e morragias de sangue, e dois anos/ se não recolherão as amorroidas ulceradas, e chagadas;/ e assim ia à Patriarchal por aliviarme; com accento a/berto na carruage, e o dito Ricol Velho me curava huma/ chaga interior na parte posterior, com Caparroza, e Vi/triolo, e Oleo de gemas de Ovos, fresco de todos os dias./
O Cirurgião do Cardeal da Motta, chamado Mano/el Teixeira me pôs o seo remedio caustico, sem eu saber/ que o era, às Ave Marias; e às duas da noite, estive à morte/ com a parte quazi cangrenada; assistido de João Bap/tista Ciceron, e o Cirurgiäo Damião de Ceita Correa, que/ ainda vive, e da Botica de S. Vicente vinha tanto lauda/no para a parte, que me avizavão o não tomasse; enten/dendo seria bebido./
Continuou o dito Medico Gandini a deluirme, com/ os oleos, com soros de Leite de Federico Hofmano, com asu/car de Leite, e com a idea de me coroborar depois com san/dalos rubros, ou seterinos: não o consentirão os Medicos//

Portugueses, e ficou a cura imperfeita como elle dizia;/ e so fallou no prognostico de eu durar só dezaseis annos,/ visto não ficar curado; e se me visse no estado a que cheguei/ despois, poderia dizer com verdade, que era morto, e agora/ ressuscitado, mais pela natureza, que pela arte./
Fui tomar banhos às Alcaçarias, para Beija, pa/ra os ares de Cintra, e seis annos não pude sahir fora;/ vendo com o mayor martirio entrar, e sahir do Adro/ da Patriarchal os meos companheiros; pois morava/ em hua caza da Biscondeça de Barbasena na Cal/çada de S.Francisco, que me tinha dado S. Magestade por/ intervenção do Marquez de Marialva; em quanto/ as obras se não fazião, e sahindo dellas, para a Calçada/ do Combro, com o sentido de tornar, estando acabadas;/ deo-me nellas o trabalho do Terremoto do anno de mil/ e sette centos, e sincoenta, e sinco, donde sahi nú, e descal/ço, tendo acabado hum banho de tina; e melhorei em/ taes termos, que pude fazer o remedio dentro da Quin/ta dos Senhores de Palhavãa, adonde me achei quazi in//

sensivelmente; que era andar quatro legoas por dia a/ Cavallo, com o conselho do Doutor Ortigão. e o Doutor Mar/tinho Nicolao, para me livrar de hua timpanitis, porque/ me queria furar a barriga o Cirurgião Excrafeton; e com/ o remedio de andar a Cavallo, milhorou./
Tive outro insulto, que foi huns desfalecimentos na/ boca do estomago, que me sentia morrer, e nove mezes ti/ve cursos, sem mos quererem atalhar, e taes, que comendo,/ ou bebendo, sahia o ultimo que tinha tomado; e com deli/quios cahia no chão mortal, e sem pulsos, e era tanto o san/gue que deitava posterior, que o Medico assistente Antonio/ Joze Pestana, de Caza do Conde de Unhão, sahia desmaya/do de ver a profusão de tanto sangue; e para tornar a mim,/ era precizo dormitar sobre hum caldo de sustancia; contra/ os pareceres de muitos Medicos da Junta, e so com o parecer/ do Doutor Alexandre de Souza fui ás Caldas da Rainha/ N. Senhora que Deos Guarde, e tomando os banhos, vim alguma coiza/ melhorado destes insultos; e no seguinte mandoume ir o/ Marquez de Marialva para sua Caza, e não quiz o Orti//

gão que lá se achava com S. Magestade que Deos tem, que eu os/ tomasse por não estarem as agoas capazes./
Continuei a padecer, morrendo a cada instante,/ mandavão-me sair os Medicos, ainda que me não tiras/se da carruage, e obrigandome a profunda melancolia,/ e tristeza, a reduzirme a cadaverico, envergonhandome de/ me ver disfigurado, e athé que os meos domesticos me vis/sem; e por força da melancolia dois annos, não sahi fo/ra se não com hum de tres Medicos na Sege, e esta cheia/ de remedios, e sustancias, applicadas pelos mesmos,que/ erão os Doutores Carlos Gandini, Antonio Joze Pestana,/ e Alexandre de Souza; e ajudandome mais o discurso,/ continuei a andar com hum Thio meo Religiozo de S./ Jeronimo como confessor, e do Mosteiro de Penha Longa/ do Termo de Cintra, para cujo Convento fui, e assestido/ do Medico Gaspar Pereira Soares Cabreira, e passando/ muito mal com o paladar perdido, não podendo engolir/ mais do que sucos do que mastigava, sem poder beber agoa, tremolando todo ezofogo, quando comia, ou be/bia; mandaraome logo para Lisboa a onde me fez san//

grar o Doutor Pedro Esteves Oriol, Medico da Camera, e/ o Doutor Joze de Santos Maria, e me sangrou Antonio/ Francisco da Costa, hoje Cirurgião da Familia Real, como/elle o pode dizer. (à margem: que em vinte e oito annos me remediou os maiores insultos)/
Em tantos, e tão differentes insultos, para o que eräo/ consultados os Medicos mais famigerados do Fizico/ Mór Pina, Ortigão, Falcão, Carapinho, Saquete, Corne/lio, que fez hua consulta larga, pedida pelo Turel, meo/ amigo, Bispo de Lamego, que mo mandou ao Estoril, as/sestido por mais estrangeiros, e Medicos Quimicos, o Barão/ Garini, outro Lanher, e o Cirurgião Pedro Traves, hoje da/ Nação Britanica tambem Boticario, de cuja Botica to/mei os ultimos remedios; este me mandava pendurar/ chumbos nas barrigas das pernas, para irem tendo alguma/ flexibilidade, pois dizião que estavão os joelhos petrifica/dos, e que sem ao menos dous anos de Caldas da Rainha N./ Senhora todos os dias, continuando os banhos, e pondo os lodos/ nas partes, não poderia esperar melhoras (porem Deos/ ma deo sem lá ir, porque tambem antão não tinha com/ que; e não sei se forão aprezentadas as supplicas que fiz//

para o poder ter./
Entrepoladamente melhorado, e doente, tive outro in/sulto, obrigado a outra junta sendo assistente o Doutor Joze/ Ignacio Medico da Familia Real, e os Doutores Saldanha,/ Batalha, e o Fizico Mor Carapinho, e rezultou da junta, que/ tomasse bichas, e fosse para os banhos do Estoril; e o Doutor/ Oriol, que os tomasse em Janeiro, e em toda a vida; pois de/via viver como pato debaixo da agoa; finalmente fui em/ dia de S. Miguel, e o ultimo banho foy a quatro de Dezem/bro; vim com alguma melhora, continuei o ano seguinte, e/ ja não foy tanta, e a queixa tão augmentada que/ mos não deixava tomar com febres, a que chamavão me/zentericas, e intermitentes; e cançado de estar doente, e com/ tantos trabalhos, cuidei só em curar a alma, e ao corpo o que/ bastasse para este fim; recorri ao meo Excelentissimo Prelado Carde/al Patriarcha; e com seo conselho, e consentimento, por lhe/ dever à muitos annos affectos de Pay; e fui para o Conven/to dos Religiozos Terceiros de Jezus por ser o mais perto/ da Patriarchal da Cotovia, para ir a ella quando pudes/se, sem embargo de estar dispensado, e não ser contado no coro//

e ter licença para não ir a elle, senão quando pudesse, e foy/ a primeira que deo com estas circunstancias, o Excelentissimo Cardeal/ Patriarcha Almeida; trazida pelo Medico Ortigão, por con/sentimento de S. Magestade que Deos tem./
Fui para o sobredito Convento com febre, e a vinte, e/ dois de Janeiro, e para hua Cella das melhores, e achei mais/ do que merecia, tanto em politica, como em caridade, doutri/na, e exemplo; logo na Pascoa seguinte fui sangrado com/ febres ardentes, e pouco milhorado, continuando os insultos,/ que os prognosticavão mayores; chamei o Doutor Ignacio/ Tamagnini, e applicandome varias receitas, dizendome que/ tinha accido fixo, por então não pude uzar dellas, por serem/ contrarias ao sentido dos mais Medicos Portuguezes, que me ve/zitavão tambem com amizade, e caridade; e eu a todos vene/rava, como devia; estando no dito Convento, muito contente, e/ satisfeito, dando graças a Deos da quella boa passage, para/ o ultimo tranzito que ali esperava: tornei no terceiro anno/ para o Estoril persuadido pelos Medicos, maz desanimado,/ pelo Tamagnini, porque me dezia que sem me curar, não me//

havião aproveitar os banhos, e assim succedeo, porque vim muito/ peor do que fui./
E continuando os insultos da queixa no mesmo/ Convento, e na mesma Cella; à meya noite na vespera do Na/tal seguinte, tomei hua emulação de pevides, e escorcioneira,/ por cauza de hum grande fluxo; e ainda quente com esperança/ de suor, passadas duas horas que se actuou no estomago, en/trou este a estallar, vaporando enxofre, e abrazandome como/ quem morria queimado; todas as veias e arterias do alto da/ cabeça, athe ós pés estalavão, e parecia que quebravão, com o corpo/ todo oleado, vaporando enxofre; toda a noite ao outro dia, ao meyo/ dia, estive neste trabalho, com a lingoa inflamada, que me não/ cabia na boca; depois fiquei tão queimado, e consumido, que o/ mesmo Cirurgião Antonio Francisco só me pode sangrar no cal/canhar, e não pode continuar; quatro mezes estive Marasmo,/ e Tabido, e assim mo disse o Medico Pugiol, e mais Medicos; na/ mesma Cella, e desprezando ja todos, sempre ouvia o Doutor/ Tamagnini, mas sem servirme das suas receitas; passei qua/tro mezes a morrer sem remedio, mandarão-me às Orvalheiras/ para os ares de Cintra; aonde estive ultimamente vinte mezes//

muito mal, e não achei melhoramento em parte al/guma, vim para a Rua de S. Jeronimo em Bellem, sustentar/ dois Irmãos, e pagarlhes caza por lhe ser assim muito pre/cizo, nestes tempos passei muito mal, e tres annos, e meyo/ de cama, e sinco de moletas, e carrinho./
O Doutor Ignacio Tamagnini depois de terem/ passado tantos annos, que tinha desprezado as suas re/ceitas no Convento de Jezus, que forão os que mediarão a/the me confirmar tolhido, tabido, com Timpanites, e An/quilozes; com a pele cheia de escamas, e conchas com/ pernas, e pés com chagas que o Cerurgião Guilherme/ Francisco curava quatorze, em hua perna, com tres castas/ de Unguentos, administrados pelo Cerurgião Antonio Francisco/ da Costa, e Manoel Joze, e João da Malta, Cirurgião Mor/ do Regimento de Lipes, que me curou nas costas, hum en/trás acarbunculado, que se tirava com atanás a materia,/ abrindose praça; com estes trabalhos; e finalmente commun/gando estes annos, na Pascoella como entrevado, pelo Cura/ de Bellem, vendo que comia, e não obrava, e o ventre se ele//

vava, cescendo a Timpanitis, chamei o Medico mais vezinho,/ que me confirmou ser Timpanitis; e ser precizo furala; deome/ duas purgas de maná, que ambas ficarão, e vendome ja de/ todo como morto, cadaverico, entregueime de todo ao dito Ta/magnini, o qual me disse, que eu estava de todo arruinado,/ maz que fazia o possivel; os remedios para este estado forão/ os seguintes./
Sette frascos de Azebre liquido, com sabão, vinho, e Rui/ barbaro, Tinturas de Ferro continuadas por muito tempo; ba/nhos de tina de sabão, e esfregaçoes fortes com fumos de Incen/ço, e o Azebre foy liquido, porque então não podia levar piro/las; bebia as agoas de ferro da Quinta do Jance da Cabeça/ Seca; vizitavame o Tamagnini na Rua de S. Jeronimo mui/tas vezes, observando os sintomas para applicar as receitas/ que forão muitas e differentes; e cançado elle de vir; e eu de/ mandar; pois me servio quazi toda a Companhia de An/drade no Regimento de Lipes, deligenciei os Hospitaes da/ Corte, e os das minhas ordens terceiras, para que o Tamagnini/ me assestisse, e observasse mais, e mais de perto; e fui tolhido//

para Lisboa em hua cadeirinha, para as cazas que se achavão/ com escritos mais perto do mesmo Tamagnini, que forão na/ Rua da Roza das partilhas; adonde o mesmo Tamagnini me/ vizitava, e entrei a sahir em cadeirinha,tolhido, e pelas esca/das en huma de roda, em que andava por caza./
Ja me dava por contente, em viver sem andar, e leva/rem me a ouvir Missa ao Oratorio como prezenciavão os Pa/dres do Convento de Jezus, que ma hiao dizer, e lembrandome/ da milagroza imagem da Senhora da Saude; Venerada no Re/al Mosteiro de S. Jeronimo de Penha Longa, no Termo de Cin/tra, e de me ter feito tres prodigiozos beneficios, de idade de/ sinco anos, sendo o primeiro, livrarme de cahir na Ribancei/ra, que avia á entrada da porta da Quinta de Pena Verde/ em Cintra; que então era valado, e não muro; e recuando a/ sege com meo Pay, e minha May dentro, que se tiravão am/bos, mais eu, pelas portinholas, e ficando a sege suspensa/ com os corpos dentro, ninguem perigou, e meo Pay não entrou/ na Quinta, e veio com os da sua companhia, render graças/ à Senhora a quem deixou hua sacra de Prata para a boca do/ Sacrario, em memoria deste beneficio.//

O segundo foi na mesma idade sendo offerecido à mes/ma Senhora por minha May com hum pano nos olhos, como sego,/ por interceção da Senhora milhorei./
O terceiro foi, estando tolhido de hum reumatismo,/ e assestido na mesma idade pelo Fizico Mór Bernardes, e com/ o Manto da Senhora tambem milhorei; e lembrandome destes/ favores; recorri novamente à Senhora com mayor fé, e esperança;/ e prometti ir levar hum painel à Senhora, que narrasse estes qua/tro prodigios, e levar juntamente as moletas, e cadeira de Ro/das em que andava; e que iria de rastos da Porta da Igreja athé/ o seo Altar, deixando em caza hum painel semelhante, ao que levava, para memoria dos Beneficios, e do meo agradecimento/ em alumeado todas as vezes, que dizesse Missa em caza, nos/ dias de N. Senhora./
Tudo compri, e executo, porque passados os quinze di/as de promessa logo o pude fazer, não parecendo natural aos/ Professores; e jurando algum, que o não era; e tudo me obrigou/ a pedir nova Rezidencia, como novo homem, lembrandome/ deste lugar vago, que mereci á mizericordia de Deos, e grandeza,//

e piedade de S. Magestade sem lho eu merecer, dezejando multi/plicarme para dar graças ao mesmo Senhor, e servilo; e a S./ Magestade que Deos Guarde nos dezempenhos das minhas obriga/ções, e do meo Beneficio.(1) (à margem: (1) a todos os Portugueses nomeados devo os maiores disvellos, mas a quem mais sempre lhe assestio, a tudo forão o Cirurgião Antonio Francisco da Costa, Cirurgião da Caza Real; e Joao da Matta Cirurgião mór do Regimento de Lipes.)/
Não hé para este lugar os trabalhos temporaes, po/liticos, e sévis de vinte, e outo annos; só digo que em todos/ elles, paguei cazas a meos Pays, deligenciei sette Decretos,/ paguei vinte, e sinco mil cruzados, pelos meos rendimentos,/ a pessoas vivas, e conhecidas, e pela caza; e actualmente as/ estou pagando, e sustentando a dois Irmãos na Rua de S./ Jeronimo de Bellem, hum de oitenta, e dois annos, outro de/ pouco menos: Depois de me achar nestes ultimos sette annos/ de doença, com menos seis centos, e secenta mil reis de renda/ annual, inculpavelmente. Tudo quanto alego ,provo, com/ Certidoes, e documentos; esquecendome de calumnias, e ingra/tidoes, para continuar como Deos for servido, que guarde a/os que me acreditarem,porque/
R. Mª//

3.(Segue-se o certificado seguinte:)


Antonio Francisco da Costa Cavaleiro professo na Ordem de Christo/ Cerurgião do numero da Caza de S. Magestade, que Deos Guarde, e Cerurgião Mór/ do Regimento de Alcantara/
Certefico q'alguns anos antes do Terremoto, me mandou chamar a primeira vez/ o Benefeciado Antonio Pedro de Andrade Lima sendo eu então Cerurgião da Camera do/ Senhor Infante D. Antonio, que Deos haja, e morava então o dito Benaficiado na descida da/ calçada de S. Francisco da Cidade, e sendo então a queixa que me mostrou huma intume/cencia hymorrhoidal a que lhe appliquei alguns remedios analinos, para o effeito de/ lhe mitigar as dores, que me afirmava o molestavão, e lhe observei hum affecto hy/pocondriaco complicado com hum viros escorbutico, que se manifestava na rui/na das gengivas, e aballo nos poucos dentes, que naquelle tempo tinha por se lhe/ ter dezarreigado, os que faltavão até cahir. A dita agregação de queixas foi/ paliando com diluentes, e atemperantes, e ante scorbuticos dos mais benignos,/ maz não obstante não deixava de tempos em tempos ser acometido, de no/vos insultos, ora mais, ora menos fortes, sendo hum dos maiores poucos tempos/ depois do terramoto morando então o enfermo na calçada do combro, que se lhe/ erritarão na quella occazião tanto os liquidos, ofenderão os solidos de sorte/ que não somente lhe cauzavão fortes movimentos convulsivos, maz tambem/hum frenezim tão furiozo, que foi precizo para o sangrar ser sugigado por/ pessoas forçosas, cujo sintoma, lhe durou alguns dias conservando sem/pre huma crispatura tanto interna como se observava o reciquido, e reten/ção das materias fecaes, e no externo, na dureza, e sequidão de todo o ven/tre, e mais membros do corpo, que me não lembro ver com frouxidão, nem/ parte massia com lentura de transpiração, maz sim tudo duro, tezo, e seco,/ e crespo; porem o beneficio dos alimentos, remedios humectantes, e anodi/nos serenavão-se por algum tempo os simptomas em cujo entrevalo//

foi transportado para o sitio do Rio de Mouro, e por ali ser acometido de novo/ insulto (ainda que menos violento) mandoume buscar aonde fui e o sangrei no/ braço, e depois de mitigado o novo ataque retirouse para a Corte, e foi assestir para o/ Convento de Jesus, e dali me mandou chamar aonde o vzitei alguas vezes como/ tambem em outras partes, em que morou, e haverá quatro ou sinco annos foi de mo/rada para Bellem assestir na Rua de S. Jeronimo aonde se lhe alterou a tão exceci/vo gráo os acrimoniados humores, que lhe cauzavão tal crispatura com incolhi/mento nas pernas, que tinha os joelhos chegados ao imbigo as mesmas pernas co/bertas de costras muito parecidas com as que produz o fogo activo; e em algumas/ partes com chagas, que ficavão da cahida das escaras como tambem de al/guns tuberculos supurados com algum humor muito corrusivo, todo ambi/to do corpo coberto de caspas salsuginozas, semelhantes ás escamas de pei/xe salgado, a elevação que naturalmente há no ventre estava sumida de sorte/ que parecia estar pegada ao espinhaço, as gengivas ofendidas os poucos den/tes descarnados, e abalados; em fim viase nele a reprezentação de hum esca/leto coberto com a péle escamoza por cauza de huma lepra escorbutica;/ o que tudo prezenciei, e neste ultimo, e o maior de todos os insultos, o prezenciou/ João da Matta Cirurgião Mór do Regimento de Lipes, que o nomeei para meu/ substituto nos meus impedimentos, e por assim ser verdade, e esta me ser/ pedida a passei debaxo de juramento do Abito, que professo Lxª 12 de 9bro de/ 1776// //


ANEXO 3



HERNÂNI MONTEIRO - Origens Da Cirurgia Portuense, Porto, 1932.
Nota nº1 à página 66

"(1) É justo que eu refira uma operação de certo vulto praticada no princípio do século XVIII por um cirurgião natural desta cidade.
Em 1735 foi impressa em Lisboa uma Memória de 40 páginas, intitulada Observação cirurgica, caso não so raro, mas único de huma Hernia ossea casualmente descoberta, animosamente extrhida, e felizmente curada, da autoria de Lourenço Pereira da Rocha, Cirurgião ordinário e do Partido de Sua Magestade na cidade de Lamego, mas natural do Pôrto, onde nasceu em 1663. (MAXIMIANO LEMOS - História da Medicina em Portugal, Vol. II, pág. 120.)
Este trabalho, com a respectiva Estampa, foi publicado, em resumo, em 1841 no Tomo XIII do Jornal da Sociedade das Sciencias Médicas de Lisboa.
"João Pereira, official carpinteiro, morador nesta cidade de Lamego, de idade de 32 annos, robusto e bem organizado, ha dez annos que cazou com mulher sadia, da qual teve até ao presente cinco filhos, vivazes, e fortes, o ultimo de dez meses". Três anos depois do casamento "principiou a intumecerse o escroto da parte esquerda, e junto á verilha", foi diagnosticada uma hérnia carnosa, e como tal tratada, mas sem alívio.
Em Maio de 1743 foi chamado aquele cirurgião que viu e tacteou "o grande e duro tumor... Principiava elle por cima da verilha esquerda, no osso pecten, occupava huma e outra verilha. Todo o escroto estava muito dilatado, e tumido, cheio de huns contentos tanto, ou mais duros, que pedras, e muito mais, que scirrhos; mas tão indolentes, que não se ressentião do mais comprimente tacto. Tinha hum comprimento, de alto a baixo, quasi dois palmos e meio, e quatro e meio em circunferencia".
Ensaiou-se o mercurio sem resultado; foi picado o tumor com uma agulha de redenho, e por fim o cirurgião "resolvese a usar de hum meio, ainda que perigoso, unico, que póde salvar o doente, a operação local". Aberto aquele tumor, de dentro tiraram, durante alguns dias seguidos, ossos de vários tamanhos e feitios, em número de vinte e seis pequenos e dois grandes, com o pêso total de 5 arráteis. Pela descrição, parece que um osso seria um occipital e outro um parietal. Algumas peças, que o autor inclui nos ossos miudos, eram dentes. Também foi extraída massa encefálica, "carne flacida quasi como miolos", e ainda "muita carne scirrhosa, que pesaria quatro arrateis."
Para preservar os tecidos da corrupção teve o operador muito trabalho, "principalmente na verilha, aonde ficou huma grande caverna, por cima do peritonéo, temendo, que este se rompesse, e sahissem os intestinos, que a uretra se rasgasse, e o genital membro se demolisse, assim como se perdeo o testiculo esquerdo corrupto e esfacelado, sem que nelle se achasse osso algum". Sobrevieram complicações, que foram a pouco e pouco serenando, e a ferida operatória, "depurando das putridinosas sordices" cicatrizou de tal forma que o doente ficou "tão sadio e valente, como d'antes era, com todas aquellas partes muy naturaes, e sem defeito algum, senão o daquella testemunha da virilidade, que se perdeo; não obstante a qual, se acha cohabitando com sua consorte, e capacissimo* de suppeditar novas experiencias (em gerações futuras)". A veracidade do caso foi autenticada por atestação dos Doutores Médicos e Cirurgiões de Lamego."