Manuel de Castro Nunes
O Capuchinho Vermelho
Laudas para um projecto de trabalhos em História da Medicina e da Cultura Médica em Portugal.
Évora, 1993.
Sempre me surpreendeu que tão exímio manipulador da res historica nunca se tivesse sentido tentado a escrever uma linha sobre história da medicina.
Invoco Jaime Cortesão, médico.
Aonde vais? - perguntou o lobo.
Vou levar a ceia à minha avozinha. - respondeu a menina.
Ao Diogo Ramada Curto.
Apresentação
Este volume contém dois pequenos ensaios que afinal bem podiam ter sido sintetizados num único. Respondem ambos ao mesmo tipo de inquietações, preliminares ao exercício definitivo de uma disciplina que queria ser radical.
Para ser mais explícito, tenho a declarar que a própria disciplina era à partida preliminar a qualquer coisa que não sabia bem determinar, mas tinha que ser algo que desabasse rotundamente sobre a modernidade e os seus tópicos e mais que tudo sobre a história da modernidade.
Atacar a modernidade pelo seu ponto mais vulnerável, foi a razão da escolha da história da medicina. Apropriava-me então de uma ideia que remontava muito longe, prestando um culto que honrava a minha empresa. Foi Diego de Torres de Villaroel quem me adestrou na arte da esgrima, ministrando-me os golpes mais seguros e directos para rechaçar os lugares comuns.
Com toda a propriedade, este volume bem poderia ostentar sobre a portada um título que escandalizaria a Vossas Excelências, Contra Vesalio. Mas com mais propriedade, chamar-se-ia Contra Tudo.
Os dois ensaios nunca foram rigorosamente terminados, nem talvez venham a ser. E agrada-me sinceramente a ideia de os publicar assim mesmo, pois nunca os conseguirei rematar. O último na ordem deste volume, que é a da escrita, foi escrito para intervir num congresso.
Em derradeiro desespero, porque havia uma dúzia de ideias que não era capaz de pronunciar de outra maneira, cozi entre os dois um texto que nem sei bem qualificar, embora o seu autor lhe tivesse dado o sábio nome de Tratado de Necrologia. Trata-se de um fragmento de um livro do meu amigo Damião das Bróteas, que apareceu inserido num dos almanaques que publicava no jornal O GIRALDO de Évora.
Prólogo
No limiar do exercício, ou a salutar medicina da História.
Medicina dos corpos? Medicina dos espíritos? Ambiguidade sobre que, de reordenação em reordenação, sempre se constituíu o contencioso que ciclicamente revivificou a disciplina. O binómio na sua mais radical expressão, o homem sujeito e objecto, ordenador e ordenado.
Ciência humana? Ciência da natureza? Lá na charneira onde o natureza se constituíu em consciência.(1)
Ao homem que decidiu dispor radicalmente dessa última liberdade que parece ser o seu corpo, o primeiro julgamento que se lhe manifesta, a primeira segregação será ainda, depois do sacerdote, a do seu médico. O discurso último e radical do poder da polis sobre o eu corpo, o eu sujeito em última instância, o eu real.
Foucault então? Foucault sim e não. O feiticeiro, o mago, o saludador, o sangrador em certo sentido e a nigromante que, furtivos, se reuniram nas clareiras das florestas, transmitiram o seu saber em senha e arderam nas fogueiras, sabiam tanto quanto Foucault. E ordenaram também a sua condição em retórica e em poder, um outro poder todavia no mesmo espaço dos corpos, nos infernos.
Afinal, toda a medicina aspira a operar sobre os espíritos, ou mediantes os corpos nos espíritos.(2)
O médico e o sacerdote, orare et laborare, entra o físico e sai o padre, entra o padre e sai o físico, exercendo um único e o mesmo poder, que é o de sangrar e purgar os corpos, mas sobretudo os espíritos. Com os sacerdotes dos antigos sacrifícios, aprendeu o médico a dissecar, a apalpar a expessura do sangue, a cartografar os humores. O presságio e o diagnóstico, o inexorável instrumental do diagnóstico, alfaias de outras liturgias. Doente vítima, doente réu, a culpa... e o destino, perversa culpa.(3)
E a piedade ainda, pelos pobres, pelos pecadores, pelos gafos, pelos cegos, pelos mancos e estorpiados. A misericórdia, a visita e o degredo. Médicos e sacerdotes esgrimem-se ainda com esse ambíguo poder de persuasão, entre a resignação e a apoteose da salvação, a penitência e a dádiva, a espera e o desfecho.
Na antecâmara de toda a violência, a hermética instituição do discurso, a esquiva prática e furtiva. O secreto rito e a liturgia da demonstração de anatomia, o rigoroso instrumento da dissecação, a meticulosa cénica do gesto e do olhar: Rembrandt. O que operam sobre ti esses estranhos poderes com que te ordenam e reordenam jamais o conhecerás; tu, que te julgarias o guardião dos segredos do teu corpo.
Medicar a então a história com a medicina? Não, esse foi o programa de Foucault.
Medicar a medicina com a história. Pensar a história da medicina só pode ser, para mim, fazer da história a clínica da medicina, a clínica do homem. Deitar-se-á no chão, na esteira de um pobre consultório e discorrerá sobre os seus pânicos, o ritual aparato dos horrores e do hediondo, dos corpos esventrados, dos escalpelos, das tesouras, dos estiletes. E fará a história dos seus medos.
Porque a história será a única disciplina possível que deixará que se insinue, na imensidão que se enquistou entre o real e o discurso, entre os actos e as retóricas, a verdade. Porque opera e assume o real como discurso, na sua historicidade, quero dizer como retórica em absoluto.
Há então que constituir a história em medicina, história ética, hipocrática, com a intenção de medicar-se e com a disposição cristalina de revelar o seu poder; o seu poder de produzir, de operar e gerar o real. Com a disposição de se reoperar como retórica que reordena os discursos, como poder que revela os poderes, como evidência que nega esse real que não aceitou o discurso como seu único constituinte. História maiêutica, socrática.(5)
E fora todavia a medicina, como de resto qualquer outra retórica do poder, um discurso unívoco como sistema, consciente de si e da sua ficção, da sua irrealidade para lá de si própria, quero dizer para lá da consciência. Tivera ordem e entâo... talvez Foucault.(6)
Mas não, na sua desordem nem chegou a descortinar que não se exerce mas acontece, nem se surprende de acontecer e de poder acontecer. Apenas retoriza a sua ocorrência e se ritualiza em espécie.
O que liga a prática de um médico à prática de outro médico, senão um ritual de invocação que nada gera, nem sequer as condições universais da ocorrência? Por isso, enquanto não exibirmos os actos, é o discurso o poder, é ele que oprime.(7)
Basta então que a história da medicina perscute os discursos, que os surpreenda na rara coesão dos seus aparatos, como processi que constituem a continuidade entre os tempos e os lugares, como estrutura narrativa e significante que tem um sentido para lá do acto, em derrapagem para universos cada vez mais longínquos? Para que então o real se revele e o poder se insinue em acto?
Discurso, então, contexto?
Não, discurso consequência.
Discurso, então, poder?
Não, discurso oprimido e reprimido pela irreverência e irreflexão absolutas dos actos.
Não se trata já de história e arqueologia do discurso e da disciplina, porque redundância em absoluto, que a disciplina é já história, a perversa e aparente continuidade entre os actos. Registemos simplesmente as retóricas para lhes estilhaçar a coesão, para que se solidarizem em absoluto com os actos e as possamos cartografar no mesmo estracto do real.
História então dos actos médicos, irreverentes, absolutos, reais - realeza absoluta - e por isso mesmo prepotentes. Porque os actos de poder acontecem, nem se exercem nem se legitimam; e o único poder, a única artimanha da retórica é contituí-los em espécie.(8)
História da medicina, história geral dos actos.
Notas
1. Importa-me não perder de vista a medicina como disciplina, ou melhor como prática social. Assumida esta atitude, invocarei a deontologia e a ética, a par com evidentes práticas de ordenação social, tais como a definição da toxicodependência como res medica, a vigilância sobre a sexualidade e a medicina forense.
Quanto à sexualidade, gostaria ainda que não se pensasse apenas em formas de controle demográfico e planeamento familiar, mas que se compreendesse que a medicina tem um papel actual dominante na adequação das atitudes sexuais à lógica consumista da sociedade de mercado.
Uma primeira chamada de atenção, todavia, para Rodrigo de Castro: em Medicus Politicus, paradigmáticos capítulos como Quomodo admissa virginitate.
2. Uma exemplar artimanha da história da medicina é a de tratar das múltiplas formas de institucionalização dos géneros heterodoxos, quando não as omite, no domínio da etnografia ou folklore médico. Exccluindo-os à partida de variadas partilhas de vastas esferas do poder social.
O que proponho, desde já, é uma avaliação mais perspicaz do estatuto de todos esses géneros e dos territórios que partilham com a medicina ortodoxa.
Mais adiante esforçar-me-ei por mostrar que, obrigada a ter que conviver com todos os géneros heterodoxos e espontâneos, a medicina terá que legitimá-los, incorporando-os ou encartando-os.
Ver referência a Morat Roma, Observaçam do Achaque (...); Silva Carvalho, no que deixa perscutar na apresentação de um exemplar de leitura indispensável, Prodigiosa Lagoa Descuberta Nas Congonhas Das Minas Do Sabará (...), Coimbra, Imprensa da Universidade, 1925.
Como referência de atitude, Silva Carvalho, Mezinhas e Remédios de Segredo, Lisboa, 1928; Luís de Pina, Ensaio de Folklore Médico Analítico, Porto, 1932; a vasta obra de etnografia médica de José Alberto Pires de Lima.
3. É o momento de invocar um raro espécime bibliográfico: Francisco Morato Roma, Observaçam do Achaque que Sua Real Magestade Dom João IV teve em Salvaterra, de que livrou milagrosamente. Em lingoagem para assim todos os grandes e pequenos (...), folheto de vinte e seis páginas sem editor, Lisboa, 1665.
Relata como os seis médicos da Câmara de Sua Magestade, estando Sua Alteza incomodado por grave retenção de urinas, empreenderam violento tratamento, logo pela sangria e depois medicamentoso, que muito repugnou.
Na falta de sucesso clínico, se recorreu aos remédios das velhas e invocou a Senhora da Conceição. Sua Magestade pediu retrete, estava curado, sem que se pudesse saber se pelas velhas, se pela Senhora, se pelo recurso radical dos médicos às pírolas de asso.
Seguem-se vinte páginas discorrendo medicamente, exarando diagnóstico, profusamente ilustrado com casos de insucesso clínico que atestam, de resto, a autópsia como instrumento decisivo de diagnóstico.
A leitura desta eminente peça retórica, que não deixa de deambular pelos herméticos terrenos do saber disciplinar, cujo texto em linguagem é cotejado em latim e que, merecendo todavia outras explorações, me interessou aqui como exemplo lapidar da retórica do diagnóstico, deve ter presente que Morato Roma foi um ilustre instrumentalista, que ensinou no Hospital Real de Todos Os Santos, instituição que será, note-se, a chave da minha ideia. E que escreveu o primeiro tratado português de enfermagem, Luz da Medicina, Pratica Racional, e Metódica, Guia de Emfermeiros (...), Liboa, 1664.
Este tipo de literatura, fundada no relato de um caso clínico a que se segue o discurso erudito do diagnóstico, torna-se ocorrente desde o princípio do século XVII e uma das peças paradigmáticas e interessantes é a Relaçam Chyrurgica de hum cazo grave a que succedeo mortificarse hum braço, e cortarse com bom successo, de Francisco Guilherme Casmak, impresso em Lisboa por Giraldo da Vinha, em 1623. Casmak era Chyrurgião del Rey e do seu Hospital e tudo leva a crer que este tipo de relatos estaria ligado à prática didáctica nos hospitais.
Muitos destes relatos são peças de intermináveis porfias entre médicos e cirurgiões, em que intervêm ainda alguns sangradores de estatuto indefinido, algebristas e meios cirurgiões, etc. É o caso da polémica que se estabeleceu entre Bernardo da Silva Moura e Bernardo da Silva d'Azevedo e tem como resultados Escrupulos Medicos e Reparo Chyrurgico por Narbedo Savil sangrador aprovado, a hum Medico intrometido. Lisboa na Officina da Congregação do Oratório, 1739; Exposição Delphica, apologetico-critica, em que se convence uma falsidade, com a verdade declarada, e se propõem varias doutrinas pertencentes à sciencia Medica. Por Bernardo da Silva d'Azevedo, na oficina de António Pedroso Galrão, 1739; e de novo Bernardo da Silva Moura, Dissertação Medica ilustrada, ou sangria da salvatella defendida (...), Lisboa, na Officina da Congregação do Oratório, 1739.
Ainda num corpus de diagnósticos reunidos pelo médico pacense José Rosa Correia no século XVIII, BPE CXXI/1-2, pude surpreender uma verdadeira casuística, envolvidos os médicos em porfias.
Retomarei o diagnóstico a propósito dos médicos da corte espanhola no século XVI, para atacar uma questão ainda mais subtil, que é o das juntas ou conferências que se reunem em torno de uma enfermidade crítica ou complicada, em cujo quadro os vários médicos operam sucessivamente sobre o doente, em disputa.
4. A anatomia, cartografia do corpo, produz outro corpo que não é já sensitivo mas retórico, iconográfico, simbólico, exegético e hermenêutico. A anatomia omite que na antecâmara da retórica cartográfica ficou o acto sanguinário da dissecação. É a consequência do acto cirúrgico, uma ocorrência que não foi discursiva mas operativa.
A devassa do corpo, a retórica do bisturi, esse instrumento da hermenêutica da fábrica humana. Uma leitura ainda para surpreender o mórbido, Hernâni Monteiro, Comentário às Estampas do Tratado de André Vesalio, ''De Humani Corporis Fabrica'', Arquivos de Anatomia e Antropologia, XXII, Porto, 1942. O comentário é em soneto.
A aula pública de anatomia como rito iniciático de superação do timor saguinis et mortis. Insinua-se-me ainda em Rodrigo de Castro a associação, de resto evidente, entre a anatomia e a geografia, bem como a preocupação de não omitir a evidência do terror.
Aproveito ainda para discorrer sobre duas práticas:
A sangria, como implícita penitência e exorcismo, oscilando entre a mágica - os lunários e calendários para as sangrias - e os géneros operatórios da meia cirurgia, paradigma da manipulação instrumentalista ocorrente. Santos Costa, Sobre Barbeiros e Sangradores no Hospital Real de Todos os Santos, AHMP, Porto, 1922.
E a receita, a retórica do hediondo na receita, mesmo na fase química expressa na agressividade da nomenclatura. Luís de Pina, Os Remédios Imundos na Medicina Popular, XV Congresso de Antropologia e Arqueologia, Lisboa, 1930, exemplo do exercício da etnografia e das categorias do folklore para reportar ao outro as práticas que nos são próprias.
5. Maiêutica ainda no sentido freudiano.
6. Cabe aqui uma chamada de atenção para o direito, que gostaria de submeter ao mesmo aparato retórico. Ver nota sobre Rodrigo de Castro, Medicus Politicus, em particular sobre o capítulo Jurisprudentiae Medicinae Comparatio.
7. O que quero dizer em última instância é que o acto médico é uma ficção, uma artimanha; e que foi a retórica médica que o constituíu em espécie médica. Fazendo de resto, em geral, opções arbtrárias.
Na realidade, a medicina, como disciplina, nunca chegou rigorosamente a encontrar o seu objecto, decidindo, segundo as circunstâncias, os actos que deve ou não incorporar. E em certas fases de reordenação, sempre que teve que invocar o seu feitio operatório e instrumentalista, não fez senão estilhaçar-se.
É que o acto cirúrgico, para exemplo, que é em si a violência e a prepotência radical, só retoricamente se constitui em medicina. Surpreendo numa carta de foral a excepção à pena estipulada para os que tirarem sangue a outrem: nem pagaram a dita pena aqueles que castigando sua molher e filhos, e escravos, e criados tirarem sangue.
O acto do talhante constitui-se em espécie pela retórica alimentar e gastronómica. Para lá disso está a carnificina e o predador.
Nas sociedades tradicionais, os executores de animais esconjuravam o acto, para não terem que sobre ele pronunciar outra retórica. Haveria ainda muito a dizer sobre certas práticas fundadoras da cirurgia, como a trepanação.
8. Rodrigo de Castro, então. A história da medicina interessou-se prodigamente pelo ginecologista, em desabono de uma obra crucial na ordenação do estatuto institucional e social do médico nos séculos XVII e XVIII. E é ainda em torno do ginecologista, que gravita uma das mais bizarras porfias da história da medicina: Ricardo Jorge, fiado em Maximiano Lemos, acusa Silva Carvalho de insegurança no latim e de citar inadequadamente Rodrigo de Castro, De Universa Muliebrium. Ambos tinham razão, era De Universa Mullierum na edição de Colónia em 1606, Tractatus de Natura Muliebris na edição de Franqueforte em 1668.
E o que fica omisso, ou a espreitar nos rodapés, é esse Rodrigo de Castro a quem Ricardo Jorge chama de raspão deontologista, no seu livro sobre Amato.
O que invoco agora é Roderici à Castro Lusitani (...) Medicus Politicus Sive De Officiis Medici-Politici Tractatus (...), Hamburgo, Froboenius, 1614.
O De Officiis Medici-Politici Tractatus oferece capítulos tão importantes para surpreender a representação que os médicos se fazem das suas práticas, como: Adversus eos qui nec medicinam nec medicos reipublicae necessarios esse contendunt; Medicina ars cum militari confertur et cum agricultura; Iurisprudentiae Medicinae comparatio; Medicum chirurgicum esse oportere; Quinam auctores sit envolvendi, et qualis esse debeat medici bilbliotheca; etc., etc..
Importantes capítulos sobre o atestado e a simulação da doença, em particular como instituição de mendicidade; sobre a loucura e a simulação da loucura; a certificação da virgindade das mulheres.
I
A história irreal.
Exercer o que culminou no acto de enunciação.
Ocorre-me então o momento culminante da epopeia médica, a consumada e exibida decomposição da fábrica, que é esse corpo que se entrega radicalmente à manuipulação operatória, o cadáver; a minuciosa apoteose da perícia.
De Humani Corporis Fabrica, a gesta que Vesalio dedicou ao fundador da dinastia que consagrou a incorporação definitiva dos médicos na hierarquia do estado, Carlos V.(1)
(...) aquele uso detestável de praticarem uns a dissecação e narrarem outros a história das partes; estes, à maneira de gaios, declamam faustosa e grandiloquamente, na cátedra, aquilo que nunca experimentaram, mas somente acumularam na memória (...) descrito nos livros dos outros (...) não havendo jamais aplicado as mãos à dissecação de um cadáver (...).
(...) assim como tudo nas escolas é mal ensinado e se passam os dias em questões ridículas, assim também, no meio de tanto ruído, são propostas aos espectadores menos coisas do que um magarefe podia exibir ao médico no açougue.(2)
É sabido como Sylvius ironizou displicentemente sobre a morfológica retórica de Vesalio e os mórbidos esfolados de Calgar, que serviam para pouco mais do que para deleitar mulheres e que reputava de reproduzirem os vícios de uma retórica dissociada da manipulação operatória do objecto. Mas no próprio terreno da porfia, a medicina culminava de novo no teatro anatómico, cuja materialidade operatória nenhuma retórica livresca, ou iconográfica, podia suprir. E o que parecia ainda preocupar Sylvius era que na materialidade do acto, na perícia operatória, se constituíra o hermetismo do ofício; sendo a devassa pela retórica, ou pela exibição iconográfica, um exercício de gratuita ostentação.(3)
Chyrurgia, manus opus, quasi operationem manualem dixeris, insinua-me Rodrigo de Castro. No núcleo celular da gesta medicinae está o corrosivo e inamovível emergir da cirurgia com todo o seu instrumental e como pradigma de um discurso que não pode deixar de se assumir como acto manipulatório.(4)
Quer-me parecer que a medicina, aquela que se haveria de institucionalizar a partir do século XVI em referência ao mito de um Galeno anatomista, cirurgião e urologista e dos seus antecessores dissecadores de corpos vivos de sentenciados, se constituíu, no seu ambiente próprio, em contra poder. Em acto de anti retórica contra as corporações mágico religiosas que se firmavam em noções de corpo lastro do espírito, corpo degredo.
Como disciplina nova, moderna, historicizava o discurso mágico e sacerdotal, exibia-lhe os rituais e a retórica e ao transformá-lo em objecto pulverizava-lhe o espaço de legitimidade. O homem reapropriava-se agora de um corpo acto, de um corpo sentidos, um corpo função comparticipante do real e da sua irreverência.
Essa disciplina foi um acto de descrença, enquanto acto. Enquanto disciplina logo se negou e se discorreu como poder, como sistema e como crença. Passou-se para o lado dos rituais, institucionalizou-se em espécie retórica e perdeu a força subtil da sua ocorrência como acto.
Sempre que em crise, a disciplina reclamar-se-á ainda do seu feitio operatório e instrumental, do prático, do sangrador, do algebrista, da dissecação, da cirurgia, da experimentação química e fisiológica (gesta urologiae), contra os manuais, os tratados e os licenciados sábios mas ineptos. Omitirá as suas partilhas institucionais e que se exerce como as formas mais rigorosas da prepotência, que se legitimam no eixo do discurso científico dominante, para se exibir na sua rebeldia, contra os obscurantismos retóricos, os frades e todos os preconceitos.(5)
Esta pequena novela com que quis narrar a gesta medicinae, no seu simplismo sem dúvida redutor, não é mais do que isso, uma novela. Uma boa alegoria e como tal, então, parece negar todo o sentido da minha proposta.
O que quero dizer é que todo o discurso é histórico e historicizável. E que a história é a última arma que me resta, a última partícla de liberdade, porque trata os discursos e as retóricas (e se trata) como objectos da espécie que são, históricos.
A minha história então do acto médico é uma nova retórica do acto? Não, é um acto de retórica, que culminou no instante em que o assumi e negarei de imediato no discurso do agir. Mas para que culmine em negação permanente da sua culminância, que quando for retórica tenha sido já plenamente acto, quando for poder tenha sido já plenamente rebeldia, quando for hermenêutica tenha sido já plenamente significado imediato e revelado. Para que se associe, irreversivelmente, com o seu objecto.
Não conheço quem tenha assediado um dogma sem fundar uma crença. O desafio, então.
Por isso história da medicina não, que é na história da medicina que a medicina redunda e culmina, porque como medicina existe e só na sua historicidade.
Que continuidade existe então entre a prática de um enfermeiro e a de um médico, entre a de um dietista e a de um cirurgião, entre a de todos estes e a de um provedor de um hospital ou de um psiquiatra? A retórica e os seus poderes, uma espécie de osmose entre os sólidos.
Terei então que me apropiar destes critérios, destes objectos, desta narrativa e destes rituais para minha história dos actos, que terá que ser um acto de história, um acto consciente de si como retórica, consciente das suas artimanhas, dos seus ardis. Consciente de que no discurso se constituíu não o poder, mas as artimanhas do poder.
E tive que me surpreender, porque o secreto e peculiar poder da história da medicina é o de multiplicar-se em actos. Actos retóricos de erudição, ora médica, ora histórica, ora nem uma coisa nem outra, pulverizados em territórios disciplinares alheios onde exerce a sua ficção ardilosa, as suas artimanhas.
É que a primeira dificuldade e a primeira artimanha da minha história dos actos médicos está, também, em constituir uma res medica.
Notas
1. Deixo aqui para posterior prospecção um vasto campo de estudo.
O livro de Vesalio faz culminar uma tradição milenar de exercício de um certo aparato de descrição morfológica dos objectos, que não deixou de ter impacto transdisciplinar. Só os geómetras tinham, desde a antiguidade, exercido de forma tão exímia esse aparato.
Sabemos do papel que a geometria teve, até ao século XVI, como alegoria e ordenador do discurso político enquanto representação do corpo social e suas hierarquias. Há que avaliar ainda em profundidade o impacto da morfologia anatómica postvesaliana.
O sentido que quero dar à dedicatória de Vesalio é rigorosamente este: durante os últimos anos do século XVI e todo o século XVII, irrompe em Portugal e em Espanha uma ocorrência que a história da medicina nunca quis avaliar. Uma crescente importância dos médicos no aparelho de estado, consagrada por um vasto aparato legal de que adiante darei conta. Para já, não sendo ainda caso para discorrer longamente sobre o assunto, importa-me simplesmente notar que os médicos partilham com os sacerdotes (os confessores, por exemplo) uma intromissão de excepção na privacidade dos príncipes e do seu corpo e uma condição particularmente conspirativa nos rituais de sociabilidade das cortes. Ver em Morato Roma as referências aos médicos da corte espanhola e sobretudo a uma autópsia praticada por Mercato no corpo do príncipe. Uma rigorosa bibliografia e orientação de pesquisa sobre a enfermidade do Príncipe Dom Carlos, filho de Filipe I e depois de Dom Afonso pode encontrar-se em Ricardo Jorge, Amato(...). Ainda requer associação a este tema o papel dos médicos portugueses no processo de abdicação de Dom Afonso VI.
Ricardo Jorge, Dom Afonso VI. Ensaio de clínica histórica, in Medicina Contemporânea, Volume I, Porto 1886.
Note-se por último a comparação permanente, Rodrigo de Castro e Vesalio, por exemplo, entre a corporis fabrica e o aedificium reipublicae.
2. De Humani Corporis Fabrica. Aproprio-me aqui, propositadamente e invocando o texto em que se insere, da consumada tradução de Hernâni Monteiro, Comentário às Estampas (...), já citado, vigiada pela edição veneziana de Franciscus Senensis, MDLXVIII, que era a de que dispunha.
3. No princípio do século, a historiografia contemporânea apropriou-se, reivindicando-a, desta porfia. Discutia-se se Vesalio adiantara algo aos tratados medievais de Berengario de Carpi e de Mondino, senão a proposta de irreverência das suas aventuras em busca de cadáveres para dissecar, os relatórios de exercícios objectivos e a iconografia de choque de Calgar, como estímulos para a institucionalização da prática. O manual, que em nada substituiria o ritual iniciático do teatro anatómico, valeria sobretudo pela sua expressão artística. Hernâni Monteiro traça uma panorâmica dese debate vivo em torno das comemorações do quarto centenário da publicação da Fabrica.
Andre Vesalio no quarto centenário da publicação da ''Fabrica'', in Arq. de Anat. e Antropol., Tomo XXIII, Lisboa 1945.
Iconografia das lições e trabalhos anatómicos de Andre Vesalio, in Arq. de Anat. e Antropol. XXIII, 1945.
Pessoalmente, penso que o tratado de Vesalio vale como representação exibida do hermético terror e do poder do ofício. Sendo de entender as observações de Sylvius no sentido de que ele, sagazmente, surpreendera o impacto que o livro teria, como representação dos rituais, no exterior da corporação.
4. Será nos capítulos II e IV, que desenvolverei, para o ilustrar profusamente, o papel da cirurgia como ordenador nuclear da gesta medicinae. Mas, para já, queria notar que, como contraponto dos géneros que reclamam intervenções mediatas sobre o objecto, a cirurgia representou-se como o paradigma de uma medicina operatória, no sentido de exercer sobre o corpo um poder materialmente visível. Noto que cirurgia e cura têm a mesma raiz etimológica, sobre o léxico grego que designa mão.
5. No capítulo seguinte, tratarei especificamente desta cronologia mítica. Importa-me todavia notar já uma ficção que a história da medicina constituíu: a decadência, em Portugal e Espanha, da prática e do ensino da medicina durante o século XVI e XVII, determinada pela hegemonia da escolástica jesuítica e contrareformista em geral, pela repressão e pelo controle clerical sobre os aparelhos políticos e culturais. Tal situação não se deixa surpreender nem na legislação que regulamenta o ofício, nem na que estatui as instituições académicas, nem na literatura médica.
Tal como se verifica em Espanha com os Filipes, parece haver em Portugal um compromisso orgânico entre o estado e as corporações médicas, pois sucedem-se em ritmo crescente até ao reinado de Dom João IV os regulamentos, alvarás e privilégios reais aos médicos, cirurgiões e boticários. Ver elenco em anexo.
Os estatutos de Dom João III para a Universidade de Coimbra instituem já a prática hospitalar como polo do ensino médico e desde 1596 que se concediam ao lente de prima de anatomia da Universidade os cadáveres dos justiçados e dos estrangeiros que faleciam no hospital. A reforma de Dom João IV, em 1653, reitera estipulando que o hospital forneça ao teatro anatómico dois sujeitos humanos por ano.
Antonio de Almeida, Colecção de Estatutos, Leis e Alvarás Relativos à Medicina, Cirurgia (...), in Jornal de Coimbra, Coimbra 1813.
Em Lisboa, o ensino é predominantemen-te ministrado no Hospital Real de Todos os Santos, de que tratarei ainda. Quanto à literatura, surprendemos muito cedo um vasto elenco de obras pelas quais os médicos ou os práticos mais próximos das instituições ordenam as práticas dos géneros mais espontâneos, manuais para algebristas, enfermeiros, sangradores, cirurgiões de meia cirurgia, parteiras.
Antonio Perez, Suma de Cirurgia, Lisboa, 1573; João Fragozo, Cirurgia Universal, Lisboa, 1586; Antonio Francisco da Costa, O Algebrista Perfeito, Lisboa, 1750; Ferreira Roque, Tratado de Phlebotomonia, Évora, 1722; Antonio Gomes Lourenço, Arte Flebotómica, Lisboa 1741; Manuel Leytão, Practica de Barbeiros, Lisboa, 1604; Quental Vieira, Guia de Sangradores, Lisboa, 1669; Leonardo de Pristo Barreira, Practica de Barbeiros Plebotomanos, ou Sangradores reformada, Coimbra, 1719.
Sempre me surpreendeu que tão exímio manipulador da res historica nunca se tivesse sentido tentado a escrever uma linha sobre história da medicina.
Invoco Jaime Cortesão, médico.
Aonde vais? - perguntou o lobo.
Vou levar a ceia à minha avozinha. - respondeu a menina.
Ao Diogo Ramada Curto.
Apresentação
Este volume contém dois pequenos ensaios que afinal bem podiam ter sido sintetizados num único. Respondem ambos ao mesmo tipo de inquietações, preliminares ao exercício definitivo de uma disciplina que queria ser radical.
Para ser mais explícito, tenho a declarar que a própria disciplina era à partida preliminar a qualquer coisa que não sabia bem determinar, mas tinha que ser algo que desabasse rotundamente sobre a modernidade e os seus tópicos e mais que tudo sobre a história da modernidade.
Atacar a modernidade pelo seu ponto mais vulnerável, foi a razão da escolha da história da medicina. Apropriava-me então de uma ideia que remontava muito longe, prestando um culto que honrava a minha empresa. Foi Diego de Torres de Villaroel quem me adestrou na arte da esgrima, ministrando-me os golpes mais seguros e directos para rechaçar os lugares comuns.
Com toda a propriedade, este volume bem poderia ostentar sobre a portada um título que escandalizaria a Vossas Excelências, Contra Vesalio. Mas com mais propriedade, chamar-se-ia Contra Tudo.
Os dois ensaios nunca foram rigorosamente terminados, nem talvez venham a ser. E agrada-me sinceramente a ideia de os publicar assim mesmo, pois nunca os conseguirei rematar. O último na ordem deste volume, que é a da escrita, foi escrito para intervir num congresso.
Em derradeiro desespero, porque havia uma dúzia de ideias que não era capaz de pronunciar de outra maneira, cozi entre os dois um texto que nem sei bem qualificar, embora o seu autor lhe tivesse dado o sábio nome de Tratado de Necrologia. Trata-se de um fragmento de um livro do meu amigo Damião das Bróteas, que apareceu inserido num dos almanaques que publicava no jornal O GIRALDO de Évora.
Prólogo
No limiar do exercício, ou a salutar medicina da História.
Medicina dos corpos? Medicina dos espíritos? Ambiguidade sobre que, de reordenação em reordenação, sempre se constituíu o contencioso que ciclicamente revivificou a disciplina. O binómio na sua mais radical expressão, o homem sujeito e objecto, ordenador e ordenado.
Ciência humana? Ciência da natureza? Lá na charneira onde o natureza se constituíu em consciência.(1)
Ao homem que decidiu dispor radicalmente dessa última liberdade que parece ser o seu corpo, o primeiro julgamento que se lhe manifesta, a primeira segregação será ainda, depois do sacerdote, a do seu médico. O discurso último e radical do poder da polis sobre o eu corpo, o eu sujeito em última instância, o eu real.
Foucault então? Foucault sim e não. O feiticeiro, o mago, o saludador, o sangrador em certo sentido e a nigromante que, furtivos, se reuniram nas clareiras das florestas, transmitiram o seu saber em senha e arderam nas fogueiras, sabiam tanto quanto Foucault. E ordenaram também a sua condição em retórica e em poder, um outro poder todavia no mesmo espaço dos corpos, nos infernos.
Afinal, toda a medicina aspira a operar sobre os espíritos, ou mediantes os corpos nos espíritos.(2)
O médico e o sacerdote, orare et laborare, entra o físico e sai o padre, entra o padre e sai o físico, exercendo um único e o mesmo poder, que é o de sangrar e purgar os corpos, mas sobretudo os espíritos. Com os sacerdotes dos antigos sacrifícios, aprendeu o médico a dissecar, a apalpar a expessura do sangue, a cartografar os humores. O presságio e o diagnóstico, o inexorável instrumental do diagnóstico, alfaias de outras liturgias. Doente vítima, doente réu, a culpa... e o destino, perversa culpa.(3)
E a piedade ainda, pelos pobres, pelos pecadores, pelos gafos, pelos cegos, pelos mancos e estorpiados. A misericórdia, a visita e o degredo. Médicos e sacerdotes esgrimem-se ainda com esse ambíguo poder de persuasão, entre a resignação e a apoteose da salvação, a penitência e a dádiva, a espera e o desfecho.
Na antecâmara de toda a violência, a hermética instituição do discurso, a esquiva prática e furtiva. O secreto rito e a liturgia da demonstração de anatomia, o rigoroso instrumento da dissecação, a meticulosa cénica do gesto e do olhar: Rembrandt. O que operam sobre ti esses estranhos poderes com que te ordenam e reordenam jamais o conhecerás; tu, que te julgarias o guardião dos segredos do teu corpo.
Medicar a então a história com a medicina? Não, esse foi o programa de Foucault.
Medicar a medicina com a história. Pensar a história da medicina só pode ser, para mim, fazer da história a clínica da medicina, a clínica do homem. Deitar-se-á no chão, na esteira de um pobre consultório e discorrerá sobre os seus pânicos, o ritual aparato dos horrores e do hediondo, dos corpos esventrados, dos escalpelos, das tesouras, dos estiletes. E fará a história dos seus medos.
Porque a história será a única disciplina possível que deixará que se insinue, na imensidão que se enquistou entre o real e o discurso, entre os actos e as retóricas, a verdade. Porque opera e assume o real como discurso, na sua historicidade, quero dizer como retórica em absoluto.
Há então que constituir a história em medicina, história ética, hipocrática, com a intenção de medicar-se e com a disposição cristalina de revelar o seu poder; o seu poder de produzir, de operar e gerar o real. Com a disposição de se reoperar como retórica que reordena os discursos, como poder que revela os poderes, como evidência que nega esse real que não aceitou o discurso como seu único constituinte. História maiêutica, socrática.(5)
E fora todavia a medicina, como de resto qualquer outra retórica do poder, um discurso unívoco como sistema, consciente de si e da sua ficção, da sua irrealidade para lá de si própria, quero dizer para lá da consciência. Tivera ordem e entâo... talvez Foucault.(6)
Mas não, na sua desordem nem chegou a descortinar que não se exerce mas acontece, nem se surprende de acontecer e de poder acontecer. Apenas retoriza a sua ocorrência e se ritualiza em espécie.
O que liga a prática de um médico à prática de outro médico, senão um ritual de invocação que nada gera, nem sequer as condições universais da ocorrência? Por isso, enquanto não exibirmos os actos, é o discurso o poder, é ele que oprime.(7)
Basta então que a história da medicina perscute os discursos, que os surpreenda na rara coesão dos seus aparatos, como processi que constituem a continuidade entre os tempos e os lugares, como estrutura narrativa e significante que tem um sentido para lá do acto, em derrapagem para universos cada vez mais longínquos? Para que então o real se revele e o poder se insinue em acto?
Discurso, então, contexto?
Não, discurso consequência.
Discurso, então, poder?
Não, discurso oprimido e reprimido pela irreverência e irreflexão absolutas dos actos.
Não se trata já de história e arqueologia do discurso e da disciplina, porque redundância em absoluto, que a disciplina é já história, a perversa e aparente continuidade entre os actos. Registemos simplesmente as retóricas para lhes estilhaçar a coesão, para que se solidarizem em absoluto com os actos e as possamos cartografar no mesmo estracto do real.
História então dos actos médicos, irreverentes, absolutos, reais - realeza absoluta - e por isso mesmo prepotentes. Porque os actos de poder acontecem, nem se exercem nem se legitimam; e o único poder, a única artimanha da retórica é contituí-los em espécie.(8)
História da medicina, história geral dos actos.
Notas
1. Importa-me não perder de vista a medicina como disciplina, ou melhor como prática social. Assumida esta atitude, invocarei a deontologia e a ética, a par com evidentes práticas de ordenação social, tais como a definição da toxicodependência como res medica, a vigilância sobre a sexualidade e a medicina forense.
Quanto à sexualidade, gostaria ainda que não se pensasse apenas em formas de controle demográfico e planeamento familiar, mas que se compreendesse que a medicina tem um papel actual dominante na adequação das atitudes sexuais à lógica consumista da sociedade de mercado.
Uma primeira chamada de atenção, todavia, para Rodrigo de Castro: em Medicus Politicus, paradigmáticos capítulos como Quomodo admissa virginitate.
2. Uma exemplar artimanha da história da medicina é a de tratar das múltiplas formas de institucionalização dos géneros heterodoxos, quando não as omite, no domínio da etnografia ou folklore médico. Exccluindo-os à partida de variadas partilhas de vastas esferas do poder social.
O que proponho, desde já, é uma avaliação mais perspicaz do estatuto de todos esses géneros e dos territórios que partilham com a medicina ortodoxa.
Mais adiante esforçar-me-ei por mostrar que, obrigada a ter que conviver com todos os géneros heterodoxos e espontâneos, a medicina terá que legitimá-los, incorporando-os ou encartando-os.
Ver referência a Morat Roma, Observaçam do Achaque (...); Silva Carvalho, no que deixa perscutar na apresentação de um exemplar de leitura indispensável, Prodigiosa Lagoa Descuberta Nas Congonhas Das Minas Do Sabará (...), Coimbra, Imprensa da Universidade, 1925.
Como referência de atitude, Silva Carvalho, Mezinhas e Remédios de Segredo, Lisboa, 1928; Luís de Pina, Ensaio de Folklore Médico Analítico, Porto, 1932; a vasta obra de etnografia médica de José Alberto Pires de Lima.
3. É o momento de invocar um raro espécime bibliográfico: Francisco Morato Roma, Observaçam do Achaque que Sua Real Magestade Dom João IV teve em Salvaterra, de que livrou milagrosamente. Em lingoagem para assim todos os grandes e pequenos (...), folheto de vinte e seis páginas sem editor, Lisboa, 1665.
Relata como os seis médicos da Câmara de Sua Magestade, estando Sua Alteza incomodado por grave retenção de urinas, empreenderam violento tratamento, logo pela sangria e depois medicamentoso, que muito repugnou.
Na falta de sucesso clínico, se recorreu aos remédios das velhas e invocou a Senhora da Conceição. Sua Magestade pediu retrete, estava curado, sem que se pudesse saber se pelas velhas, se pela Senhora, se pelo recurso radical dos médicos às pírolas de asso.
Seguem-se vinte páginas discorrendo medicamente, exarando diagnóstico, profusamente ilustrado com casos de insucesso clínico que atestam, de resto, a autópsia como instrumento decisivo de diagnóstico.
A leitura desta eminente peça retórica, que não deixa de deambular pelos herméticos terrenos do saber disciplinar, cujo texto em linguagem é cotejado em latim e que, merecendo todavia outras explorações, me interessou aqui como exemplo lapidar da retórica do diagnóstico, deve ter presente que Morato Roma foi um ilustre instrumentalista, que ensinou no Hospital Real de Todos Os Santos, instituição que será, note-se, a chave da minha ideia. E que escreveu o primeiro tratado português de enfermagem, Luz da Medicina, Pratica Racional, e Metódica, Guia de Emfermeiros (...), Liboa, 1664.
Este tipo de literatura, fundada no relato de um caso clínico a que se segue o discurso erudito do diagnóstico, torna-se ocorrente desde o princípio do século XVII e uma das peças paradigmáticas e interessantes é a Relaçam Chyrurgica de hum cazo grave a que succedeo mortificarse hum braço, e cortarse com bom successo, de Francisco Guilherme Casmak, impresso em Lisboa por Giraldo da Vinha, em 1623. Casmak era Chyrurgião del Rey e do seu Hospital e tudo leva a crer que este tipo de relatos estaria ligado à prática didáctica nos hospitais.
Muitos destes relatos são peças de intermináveis porfias entre médicos e cirurgiões, em que intervêm ainda alguns sangradores de estatuto indefinido, algebristas e meios cirurgiões, etc. É o caso da polémica que se estabeleceu entre Bernardo da Silva Moura e Bernardo da Silva d'Azevedo e tem como resultados Escrupulos Medicos e Reparo Chyrurgico por Narbedo Savil sangrador aprovado, a hum Medico intrometido. Lisboa na Officina da Congregação do Oratório, 1739; Exposição Delphica, apologetico-critica, em que se convence uma falsidade, com a verdade declarada, e se propõem varias doutrinas pertencentes à sciencia Medica. Por Bernardo da Silva d'Azevedo, na oficina de António Pedroso Galrão, 1739; e de novo Bernardo da Silva Moura, Dissertação Medica ilustrada, ou sangria da salvatella defendida (...), Lisboa, na Officina da Congregação do Oratório, 1739.
Ainda num corpus de diagnósticos reunidos pelo médico pacense José Rosa Correia no século XVIII, BPE CXXI/1-2, pude surpreender uma verdadeira casuística, envolvidos os médicos em porfias.
Retomarei o diagnóstico a propósito dos médicos da corte espanhola no século XVI, para atacar uma questão ainda mais subtil, que é o das juntas ou conferências que se reunem em torno de uma enfermidade crítica ou complicada, em cujo quadro os vários médicos operam sucessivamente sobre o doente, em disputa.
4. A anatomia, cartografia do corpo, produz outro corpo que não é já sensitivo mas retórico, iconográfico, simbólico, exegético e hermenêutico. A anatomia omite que na antecâmara da retórica cartográfica ficou o acto sanguinário da dissecação. É a consequência do acto cirúrgico, uma ocorrência que não foi discursiva mas operativa.
A devassa do corpo, a retórica do bisturi, esse instrumento da hermenêutica da fábrica humana. Uma leitura ainda para surpreender o mórbido, Hernâni Monteiro, Comentário às Estampas do Tratado de André Vesalio, ''De Humani Corporis Fabrica'', Arquivos de Anatomia e Antropologia, XXII, Porto, 1942. O comentário é em soneto.
A aula pública de anatomia como rito iniciático de superação do timor saguinis et mortis. Insinua-se-me ainda em Rodrigo de Castro a associação, de resto evidente, entre a anatomia e a geografia, bem como a preocupação de não omitir a evidência do terror.
Aproveito ainda para discorrer sobre duas práticas:
A sangria, como implícita penitência e exorcismo, oscilando entre a mágica - os lunários e calendários para as sangrias - e os géneros operatórios da meia cirurgia, paradigma da manipulação instrumentalista ocorrente. Santos Costa, Sobre Barbeiros e Sangradores no Hospital Real de Todos os Santos, AHMP, Porto, 1922.
E a receita, a retórica do hediondo na receita, mesmo na fase química expressa na agressividade da nomenclatura. Luís de Pina, Os Remédios Imundos na Medicina Popular, XV Congresso de Antropologia e Arqueologia, Lisboa, 1930, exemplo do exercício da etnografia e das categorias do folklore para reportar ao outro as práticas que nos são próprias.
5. Maiêutica ainda no sentido freudiano.
6. Cabe aqui uma chamada de atenção para o direito, que gostaria de submeter ao mesmo aparato retórico. Ver nota sobre Rodrigo de Castro, Medicus Politicus, em particular sobre o capítulo Jurisprudentiae Medicinae Comparatio.
7. O que quero dizer em última instância é que o acto médico é uma ficção, uma artimanha; e que foi a retórica médica que o constituíu em espécie médica. Fazendo de resto, em geral, opções arbtrárias.
Na realidade, a medicina, como disciplina, nunca chegou rigorosamente a encontrar o seu objecto, decidindo, segundo as circunstâncias, os actos que deve ou não incorporar. E em certas fases de reordenação, sempre que teve que invocar o seu feitio operatório e instrumentalista, não fez senão estilhaçar-se.
É que o acto cirúrgico, para exemplo, que é em si a violência e a prepotência radical, só retoricamente se constitui em medicina. Surpreendo numa carta de foral a excepção à pena estipulada para os que tirarem sangue a outrem: nem pagaram a dita pena aqueles que castigando sua molher e filhos, e escravos, e criados tirarem sangue.
O acto do talhante constitui-se em espécie pela retórica alimentar e gastronómica. Para lá disso está a carnificina e o predador.
Nas sociedades tradicionais, os executores de animais esconjuravam o acto, para não terem que sobre ele pronunciar outra retórica. Haveria ainda muito a dizer sobre certas práticas fundadoras da cirurgia, como a trepanação.
8. Rodrigo de Castro, então. A história da medicina interessou-se prodigamente pelo ginecologista, em desabono de uma obra crucial na ordenação do estatuto institucional e social do médico nos séculos XVII e XVIII. E é ainda em torno do ginecologista, que gravita uma das mais bizarras porfias da história da medicina: Ricardo Jorge, fiado em Maximiano Lemos, acusa Silva Carvalho de insegurança no latim e de citar inadequadamente Rodrigo de Castro, De Universa Muliebrium. Ambos tinham razão, era De Universa Mullierum na edição de Colónia em 1606, Tractatus de Natura Muliebris na edição de Franqueforte em 1668.
E o que fica omisso, ou a espreitar nos rodapés, é esse Rodrigo de Castro a quem Ricardo Jorge chama de raspão deontologista, no seu livro sobre Amato.
O que invoco agora é Roderici à Castro Lusitani (...) Medicus Politicus Sive De Officiis Medici-Politici Tractatus (...), Hamburgo, Froboenius, 1614.
O De Officiis Medici-Politici Tractatus oferece capítulos tão importantes para surpreender a representação que os médicos se fazem das suas práticas, como: Adversus eos qui nec medicinam nec medicos reipublicae necessarios esse contendunt; Medicina ars cum militari confertur et cum agricultura; Iurisprudentiae Medicinae comparatio; Medicum chirurgicum esse oportere; Quinam auctores sit envolvendi, et qualis esse debeat medici bilbliotheca; etc., etc..
Importantes capítulos sobre o atestado e a simulação da doença, em particular como instituição de mendicidade; sobre a loucura e a simulação da loucura; a certificação da virgindade das mulheres.
I
A história irreal.
Exercer o que culminou no acto de enunciação.
Ocorre-me então o momento culminante da epopeia médica, a consumada e exibida decomposição da fábrica, que é esse corpo que se entrega radicalmente à manuipulação operatória, o cadáver; a minuciosa apoteose da perícia.
De Humani Corporis Fabrica, a gesta que Vesalio dedicou ao fundador da dinastia que consagrou a incorporação definitiva dos médicos na hierarquia do estado, Carlos V.(1)
(...) aquele uso detestável de praticarem uns a dissecação e narrarem outros a história das partes; estes, à maneira de gaios, declamam faustosa e grandiloquamente, na cátedra, aquilo que nunca experimentaram, mas somente acumularam na memória (...) descrito nos livros dos outros (...) não havendo jamais aplicado as mãos à dissecação de um cadáver (...).
(...) assim como tudo nas escolas é mal ensinado e se passam os dias em questões ridículas, assim também, no meio de tanto ruído, são propostas aos espectadores menos coisas do que um magarefe podia exibir ao médico no açougue.(2)
É sabido como Sylvius ironizou displicentemente sobre a morfológica retórica de Vesalio e os mórbidos esfolados de Calgar, que serviam para pouco mais do que para deleitar mulheres e que reputava de reproduzirem os vícios de uma retórica dissociada da manipulação operatória do objecto. Mas no próprio terreno da porfia, a medicina culminava de novo no teatro anatómico, cuja materialidade operatória nenhuma retórica livresca, ou iconográfica, podia suprir. E o que parecia ainda preocupar Sylvius era que na materialidade do acto, na perícia operatória, se constituíra o hermetismo do ofício; sendo a devassa pela retórica, ou pela exibição iconográfica, um exercício de gratuita ostentação.(3)
Chyrurgia, manus opus, quasi operationem manualem dixeris, insinua-me Rodrigo de Castro. No núcleo celular da gesta medicinae está o corrosivo e inamovível emergir da cirurgia com todo o seu instrumental e como pradigma de um discurso que não pode deixar de se assumir como acto manipulatório.(4)
Quer-me parecer que a medicina, aquela que se haveria de institucionalizar a partir do século XVI em referência ao mito de um Galeno anatomista, cirurgião e urologista e dos seus antecessores dissecadores de corpos vivos de sentenciados, se constituíu, no seu ambiente próprio, em contra poder. Em acto de anti retórica contra as corporações mágico religiosas que se firmavam em noções de corpo lastro do espírito, corpo degredo.
Como disciplina nova, moderna, historicizava o discurso mágico e sacerdotal, exibia-lhe os rituais e a retórica e ao transformá-lo em objecto pulverizava-lhe o espaço de legitimidade. O homem reapropriava-se agora de um corpo acto, de um corpo sentidos, um corpo função comparticipante do real e da sua irreverência.
Essa disciplina foi um acto de descrença, enquanto acto. Enquanto disciplina logo se negou e se discorreu como poder, como sistema e como crença. Passou-se para o lado dos rituais, institucionalizou-se em espécie retórica e perdeu a força subtil da sua ocorrência como acto.
Sempre que em crise, a disciplina reclamar-se-á ainda do seu feitio operatório e instrumental, do prático, do sangrador, do algebrista, da dissecação, da cirurgia, da experimentação química e fisiológica (gesta urologiae), contra os manuais, os tratados e os licenciados sábios mas ineptos. Omitirá as suas partilhas institucionais e que se exerce como as formas mais rigorosas da prepotência, que se legitimam no eixo do discurso científico dominante, para se exibir na sua rebeldia, contra os obscurantismos retóricos, os frades e todos os preconceitos.(5)
Esta pequena novela com que quis narrar a gesta medicinae, no seu simplismo sem dúvida redutor, não é mais do que isso, uma novela. Uma boa alegoria e como tal, então, parece negar todo o sentido da minha proposta.
O que quero dizer é que todo o discurso é histórico e historicizável. E que a história é a última arma que me resta, a última partícla de liberdade, porque trata os discursos e as retóricas (e se trata) como objectos da espécie que são, históricos.
A minha história então do acto médico é uma nova retórica do acto? Não, é um acto de retórica, que culminou no instante em que o assumi e negarei de imediato no discurso do agir. Mas para que culmine em negação permanente da sua culminância, que quando for retórica tenha sido já plenamente acto, quando for poder tenha sido já plenamente rebeldia, quando for hermenêutica tenha sido já plenamente significado imediato e revelado. Para que se associe, irreversivelmente, com o seu objecto.
Não conheço quem tenha assediado um dogma sem fundar uma crença. O desafio, então.
Por isso história da medicina não, que é na história da medicina que a medicina redunda e culmina, porque como medicina existe e só na sua historicidade.
Que continuidade existe então entre a prática de um enfermeiro e a de um médico, entre a de um dietista e a de um cirurgião, entre a de todos estes e a de um provedor de um hospital ou de um psiquiatra? A retórica e os seus poderes, uma espécie de osmose entre os sólidos.
Terei então que me apropiar destes critérios, destes objectos, desta narrativa e destes rituais para minha história dos actos, que terá que ser um acto de história, um acto consciente de si como retórica, consciente das suas artimanhas, dos seus ardis. Consciente de que no discurso se constituíu não o poder, mas as artimanhas do poder.
E tive que me surpreender, porque o secreto e peculiar poder da história da medicina é o de multiplicar-se em actos. Actos retóricos de erudição, ora médica, ora histórica, ora nem uma coisa nem outra, pulverizados em territórios disciplinares alheios onde exerce a sua ficção ardilosa, as suas artimanhas.
É que a primeira dificuldade e a primeira artimanha da minha história dos actos médicos está, também, em constituir uma res medica.
Notas
1. Deixo aqui para posterior prospecção um vasto campo de estudo.
O livro de Vesalio faz culminar uma tradição milenar de exercício de um certo aparato de descrição morfológica dos objectos, que não deixou de ter impacto transdisciplinar. Só os geómetras tinham, desde a antiguidade, exercido de forma tão exímia esse aparato.
Sabemos do papel que a geometria teve, até ao século XVI, como alegoria e ordenador do discurso político enquanto representação do corpo social e suas hierarquias. Há que avaliar ainda em profundidade o impacto da morfologia anatómica postvesaliana.
O sentido que quero dar à dedicatória de Vesalio é rigorosamente este: durante os últimos anos do século XVI e todo o século XVII, irrompe em Portugal e em Espanha uma ocorrência que a história da medicina nunca quis avaliar. Uma crescente importância dos médicos no aparelho de estado, consagrada por um vasto aparato legal de que adiante darei conta. Para já, não sendo ainda caso para discorrer longamente sobre o assunto, importa-me simplesmente notar que os médicos partilham com os sacerdotes (os confessores, por exemplo) uma intromissão de excepção na privacidade dos príncipes e do seu corpo e uma condição particularmente conspirativa nos rituais de sociabilidade das cortes. Ver em Morato Roma as referências aos médicos da corte espanhola e sobretudo a uma autópsia praticada por Mercato no corpo do príncipe. Uma rigorosa bibliografia e orientação de pesquisa sobre a enfermidade do Príncipe Dom Carlos, filho de Filipe I e depois de Dom Afonso pode encontrar-se em Ricardo Jorge, Amato(...). Ainda requer associação a este tema o papel dos médicos portugueses no processo de abdicação de Dom Afonso VI.
Ricardo Jorge, Dom Afonso VI. Ensaio de clínica histórica, in Medicina Contemporânea, Volume I, Porto 1886.
Note-se por último a comparação permanente, Rodrigo de Castro e Vesalio, por exemplo, entre a corporis fabrica e o aedificium reipublicae.
2. De Humani Corporis Fabrica. Aproprio-me aqui, propositadamente e invocando o texto em que se insere, da consumada tradução de Hernâni Monteiro, Comentário às Estampas (...), já citado, vigiada pela edição veneziana de Franciscus Senensis, MDLXVIII, que era a de que dispunha.
3. No princípio do século, a historiografia contemporânea apropriou-se, reivindicando-a, desta porfia. Discutia-se se Vesalio adiantara algo aos tratados medievais de Berengario de Carpi e de Mondino, senão a proposta de irreverência das suas aventuras em busca de cadáveres para dissecar, os relatórios de exercícios objectivos e a iconografia de choque de Calgar, como estímulos para a institucionalização da prática. O manual, que em nada substituiria o ritual iniciático do teatro anatómico, valeria sobretudo pela sua expressão artística. Hernâni Monteiro traça uma panorâmica dese debate vivo em torno das comemorações do quarto centenário da publicação da Fabrica.
Andre Vesalio no quarto centenário da publicação da ''Fabrica'', in Arq. de Anat. e Antropol., Tomo XXIII, Lisboa 1945.
Iconografia das lições e trabalhos anatómicos de Andre Vesalio, in Arq. de Anat. e Antropol. XXIII, 1945.
Pessoalmente, penso que o tratado de Vesalio vale como representação exibida do hermético terror e do poder do ofício. Sendo de entender as observações de Sylvius no sentido de que ele, sagazmente, surpreendera o impacto que o livro teria, como representação dos rituais, no exterior da corporação.
4. Será nos capítulos II e IV, que desenvolverei, para o ilustrar profusamente, o papel da cirurgia como ordenador nuclear da gesta medicinae. Mas, para já, queria notar que, como contraponto dos géneros que reclamam intervenções mediatas sobre o objecto, a cirurgia representou-se como o paradigma de uma medicina operatória, no sentido de exercer sobre o corpo um poder materialmente visível. Noto que cirurgia e cura têm a mesma raiz etimológica, sobre o léxico grego que designa mão.
5. No capítulo seguinte, tratarei especificamente desta cronologia mítica. Importa-me todavia notar já uma ficção que a história da medicina constituíu: a decadência, em Portugal e Espanha, da prática e do ensino da medicina durante o século XVI e XVII, determinada pela hegemonia da escolástica jesuítica e contrareformista em geral, pela repressão e pelo controle clerical sobre os aparelhos políticos e culturais. Tal situação não se deixa surpreender nem na legislação que regulamenta o ofício, nem na que estatui as instituições académicas, nem na literatura médica.
Tal como se verifica em Espanha com os Filipes, parece haver em Portugal um compromisso orgânico entre o estado e as corporações médicas, pois sucedem-se em ritmo crescente até ao reinado de Dom João IV os regulamentos, alvarás e privilégios reais aos médicos, cirurgiões e boticários. Ver elenco em anexo.
Os estatutos de Dom João III para a Universidade de Coimbra instituem já a prática hospitalar como polo do ensino médico e desde 1596 que se concediam ao lente de prima de anatomia da Universidade os cadáveres dos justiçados e dos estrangeiros que faleciam no hospital. A reforma de Dom João IV, em 1653, reitera estipulando que o hospital forneça ao teatro anatómico dois sujeitos humanos por ano.
Antonio de Almeida, Colecção de Estatutos, Leis e Alvarás Relativos à Medicina, Cirurgia (...), in Jornal de Coimbra, Coimbra 1813.
Em Lisboa, o ensino é predominantemen-te ministrado no Hospital Real de Todos os Santos, de que tratarei ainda. Quanto à literatura, surprendemos muito cedo um vasto elenco de obras pelas quais os médicos ou os práticos mais próximos das instituições ordenam as práticas dos géneros mais espontâneos, manuais para algebristas, enfermeiros, sangradores, cirurgiões de meia cirurgia, parteiras.
Antonio Perez, Suma de Cirurgia, Lisboa, 1573; João Fragozo, Cirurgia Universal, Lisboa, 1586; Antonio Francisco da Costa, O Algebrista Perfeito, Lisboa, 1750; Ferreira Roque, Tratado de Phlebotomonia, Évora, 1722; Antonio Gomes Lourenço, Arte Flebotómica, Lisboa 1741; Manuel Leytão, Practica de Barbeiros, Lisboa, 1604; Quental Vieira, Guia de Sangradores, Lisboa, 1669; Leonardo de Pristo Barreira, Practica de Barbeiros Plebotomanos, ou Sangradores reformada, Coimbra, 1719.
II
Reconstruir o caos na sua elementar desordem, surpreender um objecto ininteligível.
Ou uma teoria geral das artimanhas.
A história da medicina é geralmente feita por médicos. É esse, de resto, o primeiro dos critérios que a investe na sua autoridade.(1)
Durante muito tempo andei convencido de que era indispensável que uma outra história da medicina fosse experimentada por um doente. Não sei já em que lúcidas condições, ou em que lúcido momento, me desenganei de tão crassa ingenuidade.
Desde muito cedo que em Portugal a história da medicina se constituíu em disciplina indispensável ao exercício do ofício e à formação do oficial. Em 1911 entrou definitivamente nos curricula escolares com o nome explícito de História e Filozofia Médica, embora se ensinasse já no contexto da filosofia que constava do curriculum desde a Reforma de 1772 da Universidade de Coimbra.(2)
Desde muito cedo também que em Portugal a história da medicina ficou adstrita a um ambiente peculiar, que lhe imprimiu as marcas de um subtil destino. Refiro-me à geração que no Porto e em particular na Escola Medico-Cirúrgica se aglutinou em torno de Maximiano Lemos.
Maximiano Lemos acabou o seu curso em 1881. Dois anos antes concluíra-o Ricardo Jorge e no mesmo Júlio de Matos e José Leite de Vasconcelos. O Porto era aquele de uma intensa sociabilidade intelectual, que reunia os médicos à memória de Camilo e a um sólido ambiente de erudição revolucionária. No firmamento intelectual portuense, pontificavam Joaquim de Vasconcelos, Carolina Mochaelis, Teófilo Braga, Sampaio Bruno, Adolfo Coelho.
Interessa-me o Bruno, de O Porto Culto, de Os Portuenses Ilustres, interessa-me o Teófilo. Para neles antever o que me parece irreversível, a matriz de uma história que serve a medicina, porque constroi as fábulas que lhe toleram a ocorrência retórica. Porque a história da medicina portuguesa tem três protagonistas, o judeu cristão novo, o cirurgião e o iluminado.
Eis então o encanto e a magia da história da medicina portuguesa, pois tudo concorreu para edificar uma ordem rigorosa. O esboço cronológico que arruma a dissertação inaugural de Maximiano em 1881, que já arrumara em 1860 a de José F. A. de Gouveia Osório, o das Conferências do Casino, atribui à disciplina as configurações retóricas e os tópicos definitivos e é para a ordem subtil desta arrumação que reclamo a atenção do leitor.
Primeiro período, da criação dos Estudos de Santa Cruz à fundação da Universidade. Segundo período até à fundação do Hospital Real de Todos os Santos. Terceiro período até à Reforma da Universidade de Coimbra. Eu acrescentaria um mais, que Maximiano sentiu um certo acanhamento de pronunciar explicitamente, até à criação da Escola Médico Cirúrgica do Porto. Outro depois, claro.(3)
E haveria, se não fossem os limites que impus a este esboço, de tratar a história da medicina como a disciplina onde redunda uma peculiar cultura médica, que é o podium em que se consagra o peso social e político da classe, traço distinto do carácter da sociedade portuguesa da transição do século.
É pois como ritual de sociabilidade e socialização da classe, que a história da medicina me interessa. E para ficar mais claro, interessa-me ainda notar que os grandes protagonistas da historiografia da medicina portuguesa se envolveram irreversivelmente na medicina forense e na anatomia. Maximiano foi director do Instituto Médico Legal do Porto, foi anatómico Hernâni Monteiro e médico forense J. A. Pires de Lima. Ricardo Jorge foi higienista, que é outra forma de praticar uma medicina de inequívoco envolvimento na ordenação institucional. E foi regente da cadeira de medicina legal e director da Morgue do Porto essa surpreendente personalidade que foi João Monteiro de Meira.
Os médicos apropriaram-se dos instrumentos institucionais e eruditos e estabeleceram os critérios que haveriam de constituir a história em estrato, o mais sólido, da retórica médica. Inventaram-lhe os protagonistas e edificaram os tópicos e entrelaços da narrativa que lhe conferiu ordem. A história da medicina tornou-se, então, num nível nuclear das instituições médicas em Portugal.(4)
É porventura a razão por que a história da medicina em Portugal nunca deixou, salvo raras excepções que são algumas incursões de Egas Moniz e de Luís de Pina e as peculiares opções temáticas de Silva Carvalho, aliciar pelas solicitações que, um pouco por todo o lado, lhe eram dirigidas pela sociologia, pela etnografia, pela antropologia e que constituiram o primeiro aparato crítico que sobre os critérios internos se exerceu.(5)
A história da medicina tornou-se um discurso disciplinar médico, que fez redundar o significado de medicina e de história; e ainda bem que assim foi, pois esta redundância denunciou-me a medicina como história, a instituição médica como retórica histórica ou narrativa e deixou-me antever o território aonde ficara, em degredo, o acto e a prática médica, já no seu sentido umédico, apenas como acto. Participando da natureza de todos os actos, sem o envolvimento, a coesão e a consequência que lhe advém das artimanhas do discurso.
Ora, é ainda esta coesão, indissociável na espécie, entre o acto médico e a retórica médica, o primeiro instrumento da minha história dos actos médicos. Já não como sujeito discursivo mas como discurso objecto, que não interessa submeter aos meus aparatos, mas estabelecer-lhe com rigor os seus; para que deixe surpreender as suas fantasias, as suas ficções, as suas artimanhas, os seus ardis de que não quero senão apropriar-me.
Porque a minha artimanha consiste em disparar a retórica da história médica bem para dentro da retórica médica, em unidade indissociável e como instituição única, para não deixar assediar o acto em duas frentes. Constituir a res medica em logos medicum, em retórica da mesma natureza da história, em poder, em gesta medicinae.(6)
Para mais a história da medicina, nas suas manhosas artimanhas, opera uma ordem aparente num caos vulcânico. Na sua mais surpreendente e corrente produção, não chega a encontrar um objecto; multiplica-se em exercícios de erudição, constelados num espaço aberto e sem limites para o qual não dispõe de instrumentos de controle, importa dados já laborados ou adquiridos por outras disciplinas e nada ou pouco interroga ou investiga.(7)
A artimanha de manuais como os de Maximiano Lemos, A. J. de Oliveira, Augusto Silva Carvalho, Esaguy, Ferreira de Mira ou Luís de Pina, consiste em, através de um esmerado trabalho de enfabulação e apropriando-se para o exercer em vasto horizonte cronológico da narrativa do Compêndio Histórico (ver nota 4), edificarem um processus que é a árvore genealógica do seu próprio saber, mas também da sua autoridade. E que consagra a cirurgia como ordenador da gesta medicinae.
É a artimanha desta enfabulação o primeiro instrumento de que tenho que apropriar-me.(8)
Porque a unidade ou coerência do discurso disciplinar médico, que retoriza como uma única instituição e um único sistema uma diversidade amontoada de práticas, químicas, cirúrgicas, físicas, mecânicas, matemáticas, psíquicas, rituais, invocatórias, jurídicas, institucionais, é idêntica à coerência da retórica da história médica que se constitui sobre todas estas fracturas e descontinuidades e ainda sobre as próprias a um exercício disciplinar alucinado pelo objecto. A medicina é um manual, um manual de história da medicina.
Acontece então que a história da medicina invadiu um vasto campo transdisciplinar, desde a história política e das instituições, à história das ideias científicas e da cultura, da filologia e da filosofia, etc, etc,. Sem operar qualquer critério interdisciplinar, senão o de fazer redundar a esmo todo este aparato no núcleo do seu escorreito aparato discursivo.
Como opera esta desordem?
Arrogando-se, de seguida, que o discurso, os critérios e o exercício da história da medicina são de espécie médica.
Sejam então.
E seja a minha história do acto médico de espécie histórica. E que prossiga uma res historica.
Tudo o que disse então redunda numa pergunta liminar: como se constituem os actos em espécie médica?
Notas
1. História da medicina e história da filosofia, dois universos que me intressará ainda pôr em confronto. A história da filosofia como hermenêutica filosófica e como gesta philosophiae. Roger Cartier, A História Cultural, Difel, Lisboa, 1988.
2. O texto da Reforma de 1772 é particularmente explícito quando enuncia o papel orgânico da história da medicina como extensão (núcleo) do discurso disciplinar médico. Tratando da matéria ao estabelecer os conteúdos da cadeira Instituciones, diz: Estas são as razoens que me movem estabelecer a cadeyra de Historia da Medicina e dos auctores que tractarão della, para que os estudantes não soubessem somente que sorte de livros havião de ler e de que modo; mas tambem a Historia da mesma Arte, que he o caminho para adquirir mais facilmente esta Sciencia. Embora a minha ideia seja a de que a história da medicina se não distingue da própria disciplina médica, razão da permanente referência à autoridade histórica dos tratados, importa notar que a disciplina está explicitamente constituída em Portugal desde o século XVII. Ezequiel de Castro, Historia Medica, 1642; Zacuto Luzitano, De Medicorum Principium Historia, 1667; Rodrigo de Castro, Manoel de Sa Mattos. No século XVI, já as Centuriae de Amato.
Em Luís de Pina, Medicina e Médicos na História da Filosofia em Portugal, in Studium Generale, II, 1-2, Porto, 1952, encontrei a mais radical expressão da consciência do papel da história da medicina como representação da coesão institucional da corporação. Ainda na sua História Geral da Medicina, citada adiante.
Uma nota para a história do ensino médico, que toda a história da medicina elege para primeiro objecto formal. A transmissão, a reprodução e o trânsito das ideias médicas como estrutura ideológica da coesão do grupo. Como deixo explícito, a minha ideia é que a história da medicina portuguesa tem um tema nuclear: hospitais versus universidades, como ordenadores das grandes revoluções no ensino médico. Mas quando falo de ensino médico, não esqueço os manuais e os tratados.
É neste duplo sentido que invoco o texto da Reforma de 1772, mas também o clássico de Maximiano Lemos, História do Ensino Médico no Porto, Porto 1925.
3. José F. A. de Gouveia Osório, Notas para a História da Medicina Portuguesa, Oração Inaugural do Ano Académico de 1860/1861, in Gazeta Médica do Porto, Porto, 1860.
Maximiano Lemos, A Medicina em Portugal até aos fins do século XVIII, Dissertação Inaugural do Ano Académico de 1881/1882, Porto, 1881.
4. Extemporaneamente, mas propositadamente, deixo aqui um fragmento exemplar sobre que se constituíu toda retórica da história médica posterior.
(...) os jesuítas plantaram na Universidade de Coimbra a venenosa raíz da Fisica Escolástica, que depois dos Novos Estatutos Jesuiticos só tem botado discórdias em sãos e a morte nos enfermos. Sepultaram na ignorancia a verdadeira Física; a Chimica Filosofica e a Farmaceutica; a Botanica; a Anatomia, que já Galeno chamava no seu tempo Olho Direito da Medicina.
Confundiram o Estudo Practico com a Theoria; fazendo assim especulativas as enfermidades materiaes do corpo humano.
Trata-se claro do Compêndio Histórico...
Uma magnífica e concisa exposição do ambiente de trabalho e da sociabilidade intelectual de Maximiano Lemos, encontrei-a no discurso pronunciado na Misericórdia do Porto por Hernâni Monteiro, no centenário do seu nascimento, Maximiano Lemos, Porto, 1960. Também no Prefácio de J. A. Pires de Lima a História do Ensino Médico no Porto, já citado.
4. Algumas obras de Luís de Pina e sobretudo a História Geral da Medicina revelam que, pelo menos, conhecia um amplo reportório bibliográfico e de tendências. Em Silva Carvalho surpreende-se um interesse notável pelo estudo de práticas periféricas, ou por enfermidades que determinam amplos envolvimentos sociais e institucionais. História da Lepra em Portugal, Subsídios para a História das Parteiras em Portugal, etc.. Ver remessa bibliográfica em anexo.
Egas Moniz ainda me merecerá referência em especial.
6. A consciência da importância da história como ordenador do território disciplinar, constituíu-a em objecto de uma verdadeira história da história. Hernâni Monteiro, Evolução do Ensino da História da Medicina, Porto, 1932; Luís de Pina, Prólogo à História Geral da Medicina, Porto, 1942. Foi aqui que descobri o objecto da minha própria disciplina.
7. É crucial, também por motivos que adiante se tornarão claros, saber até que ponto a saída a lume em 1883 dos Documentos Históricos da Cidade de Gabriel Pereira, em que publica um amplo rol de documentos interessando à história das instituições médicas, regimentos de físicos e boticários, alvarás, regimentos de albergarias, etc., terá solicitado aos médicos do Porto abertura para certas áreas da história das instituições médicas. Entre 1889 e 1890 os Arquivos de História da Medicina Portuguesa publicaram importantes elencos documentais que interessam à história das instituições médicas, como por exemplo: Colecção de Estatutos, Leis, Alvarás, Decretos e Ordens, Relativos à Medicina e Cirurgia, AHMP, Tomos III e IV.
Gabriel Pereira aí publicou o códice CXXIII/1-18 da Biblioteca Pública de Évora, cimélio precioso, em cuja capa jaz colada uma carta de Maximiano para o sábio eborense. A testar as ligações entre Maximiano e Gabriel Pereira e a mútua estima, estão as dedicatórias pessoais que todos os exemplares das obras do portuense na BPE ostentam.
8. Os tópicos desta mitologia, que tecem a trama da enfabulação, podem ser surpreendidos em qualquer manual ou bosquejo histórico. Mas também na escolha dos objectos temáticos das monografias: Amato e em geral todos os judeus ou cristãos novos, Ribeiro Sanches, a cirurgia e as gestas da anatomia e as aventuras da dissecação, a urologia, a farmacologia experimental do renascimento ao século XIX. Mas, sobretudo, a importância que a cirurgia tem em toda a teia historiográfica e a oposição, seja real ou construída, entre as instituições hospitalares e as universidades.
A sucessão dos tempos míticos do processus: a ressurgência galénica na escola salernitana, a anatomia e a dissecação; o obscurantismo fradesco medieval; o renascimento da anatomia e da cirurgia no século XVI, Vesalio, Pareo, a farmacologia de Paracelso a Van Helmont; as dinastias de judeus portugueses e espanhois e a corrosiva repressão jesuítica na Península nos século XVII e XVIII; a mão de ferro do Marquês de Pombal, Verney e Ribeiro Sanches; a reviradeira e a resistência heroica de Dom Francisco de Lemos na Universidade de Coimbra.
As peças que como paradigma proporia para uma sondagem: Silva Carvalho, A Medicina Portuguesa no Século XVI, Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, Volume III, 1940; Luís de Pina, Histoire de la Medicine Portuguaise (Abrégè), Porto, 1934; Joaquim Alberto Pires de Lima, A Medicina Forense em Portugal - Esboço Histórico, Porto, 1934, indispensável.
Curiosamente foi Pires de Lima que na década 1930/40 denunciou o decalque do Compêndio Histórico na edificação dos tópicos da história da medicina, mas então de um ponto de vista ideologicamente comprometido com os tópicos da historiografia do Estado Novo. História da Medicina Portuguesa, Porto, 1936; D. Afonso VI, Porto, 1938.
III
O ambíguo domínio de uma história dos actos médicos.
Ainda uma teoria geral das artimanhas.
Assediarei então previamente a cidadela pela sua porte nobre. Edificarei uma história da história da medicina, uma archihistória da medicina. Tentarei encontrar a sua ordem para surpreender o que já antevejo, o seu caos.
Porque no seu caos não é já um vestígio de si própria, mas dos actos médicos, da sua irreverência e da sua ocorrência. Não foi a medicina que disciplinou os actos médicos, foram os actos que se quiseram representar em medicina, em instituição que se constituisse nas condições, todavia aparentes, que presumem o exercício discricionário do acto.(1)
E se os actos médicos não tivessem deixado outros vestígios, senão a história da medicina?
Poderíamos pensar que um bom vestígio de um acto médico, absoluto e real, é um diagnóstico, um certificado, uma sentença jurídica do foro médico, a expressão de indignação ou sofrimento de um doente, ou de alívio, ou de repulsa, uma disposição de um regimento de um hospital, a inexorável expressão regimentária do estatuto de um médico, um instrumento operativo do ofício, uma receita, o aparato instrumental ou institucional de uma dissecação ou intervenção cirúrgica, um grito, um suspiro. E que assim esboçara o primeiro aparato de tópicos para a minha história dos actos médicos.(2)
E mesmo assim, não saberia sequer como desempoeirá-los, como lhes extrair o cheiro bolorento dos arquivos, a não ser em contraponto com a retórica e o discurso disciplinar.
Quero dizer que só na medida em que se assume na ficção e se introduz esquivamente na artimanha contituindo-se em espécie, é que o vestígio e o acto que lhe subjaz pode inundar o discurso, contituindo-se numa nova narrativa que, se o não torna acessível em si, torna perceptível a desordem que operou secretamente no real.(3) Porque talvez a retórica não tenha ordenado os actos, mas, na sua historicidade, tenha constituído ela própria os vestígios.
Eis então que uma história geral dos actos é sempre um exercício mediatizado pelos vestígios que a retórica disciplinar, como produtora da história e da historicidade dos objectos, constituiu. Ora eis que é o aparato de uma história da história da medicina, uma história que tenha por objecto uma res gestae medicinae, que tem que mediatizar até os critérios das opções arquivísticas.(4)
Quer isto dizer que nem sequer posso constituir os aparatos que qualifiquem os meus objectos, sem perscutar a desordem em que a retórica disciplinar edificou os vestígios. Que não é já só a desordem própria à irreverente ocorrência dos actos, mas também à ocorrência da retórica que os subverteu em espécie.
Porque o vestígio é algo que se enquistou num subtil estrato entre os actos e a retórica, mas que é, inexoravelmente, constituído pela narrativa.
Uma história então do acto médico, porque uma história experimental. De toda a história.
Fundará com certeza uma retórica experimental da relação da narrativa com os vestígios, da história com as histórias de um objecto e de uma disciplina; para cartografar as mútuas desordens, as mútuas fracturas e descontinuidades e avaliar as vulnerabilidades.
Terá que presumir que nada existe senão na sua historicidade, investido nas artimanhas que ela lhe confere e enquistado num processus que constituíu a nossa própria ideia de cosmos. Uma Archihistória.
Sinteticamente, um acto médico, nos seus vestígios e na sua historicidade, só existe como res medica, embora possamos, retoricamente, constituir actos em si, depurados de espécie. Porque o vestígio é o constitutivo retórico de um acto.
Haverei então de reconstituir os aparatos que sirvam de suporte à minha tentativa de uma história da história médica, em duas frentes: na reconstituição analítica dos aparatos retóricos da história da medicina como espécie retórica médica; na reconstituição dos aparatos retóricos que depurem o acto da sua retórica espécie e isolem, então, a história médica como constitutiva da medicina, quero dizer da espécie do acto.
Notas
1. Ocorre-me aqui citar uma passagem de Luís de Pina, Abrégè: En ce qui concerne la profession on peut dire que les decrets royaux n'ont pu réformer les vieilles habitudes: une légion de personnes, non diplomées, exerçant la médicine, saigneurs, algebristas, barbeiros, mulheres de virtude, etc.
Pour éviter cet état de choses, une loi de 1392 oblige tous ceux qui voudraient la pratiquer, à être examinés par le fisico mor.
Para suprir a falta de licenciados, esta multidão de práticos será o suporte da instituição médica ainda no século XVIII em Portugal. O papel fundamental do físico mor e, no contexto regional, dos médicos dos partidos, é encartar todos estes oficiais menores.
Mau grado o exame, a sua prática não é necessáriamente igual à dos médicos, mesmo se assumirmos a ficção que a dos médicos é igual entre si. Quantas vezes não é assumida e inequivocamente mágica?
São as disposições regimentais que lhe conferem espécie médica. Em outro texto desenvolvo de resto este tema até ao absurdo de, com Diego Torres Villaroel, concluir que o que distingue as duas medicinas é a forma de locomoção dos seus oficiais. Doctor a pie.
Ver ainda em Casmak, obra citada, o papel de um algebrista, o seu estatuto e a sua condição, nas conferências de uma junta médica que amputou um braço a Tristão da Cunha. Casmak, que tenta obscuramente não prover explicitamente na razão o algebrista, que teimava que o fidalgo tinha o rádio e o cúbito fracturados, narra um tratamento em tudo contrário aos sintomas que nem consegue omitir. O resultado é a mortificação e amputação.
É claro que a história da medicina se apropriou deste assunto para reforçar as suas teses de decadência e atraso relativo da medicina e da cultura em Portugal até à reforma da Universidade, sustentando que este exército de empíricos não diplomados se constituía no maior bloqueio a um equilibrado desenvolvimento científico. Mais adiante avaliarei a contradição sobre que se edificou esta peregrina ideia, que mal pode conviver com aqueloutra de uma medicina catedrática e especulativa, dominada por teólogos, frades e todo o género de teóricos.
Resta-me registar que C.R. Boxer, num estudo que considero de leitura obrigatória, repete, também ele, exaustivamente estema. Some remarks on the social and professional status of phisician and surgeons in the iberian world, 16th-18th century, Revista de História de S. Paulo, Volume L, Tomo 1, 1974. Diz nomeadamente: There (neste domínio efectivo das disciplinas empíricas, sangradores, algebristas, parteiras, etc.) can be no doubt that the teaching and practise of medicine and surgery in Portugal lagged badly that of most West European Countries, including Spain, France, Itally, England and the Neederlands.
Para surpreender, mesmo mediatamente, o papel institucional destes oficiais, para além do clássico de Hernâni Monteiro, Origens da Cirurgia Portuense, já citado, ver ainda: Alfredo Luís Lopes, Contribuição para a História das Ciências Médicas em Portugal: O Hospital Real de Todos os Santos, Lisboa, 1890; Santos Costa, Sobre Barbeiros e Sangradores no Hospital Real de Todos os Santos, AHMP, XII, 1922; Silva Carvalho, Os Cirurgiões Ambulantes em Portugal e Espanha, Lisboa, 1930. Ver remessa bibliográfica anexa.
Uma menção especial para Iria Gonçalves, Físicos e Cirurgiões Quatrocentistas; As Cartas de Exame, in Do Tempo E Da História, Volume I, Lisboa, 1965.
2. Relembro agora a nota (6) ao segundo capítulo, para notar esta alucinação que, a partir da publicação dos tomos III e IV dos Arquivos de História da Medicina Portuguesa, se contituíu entre os historiadores da medicina, pela qual lhes parecia poderem surpreender algo que não tinham vislumbrado, manipulando um novo aparato de vestígios. Sendo todavia uma ruptura apreciável, aqui se haveria de edificar um novo domínio de legitimação da retórica médica.
3. Num interessante artigo sobre a literatura médica no século XVI, que o envolveu numa intensa polémica com Ricardo Jorge e que cito em anexo, Silva Carvalho explica-nos as razões porque excluiu o Dialogo da Perfeiçam e Partes que sam necessarias ao Bom Medico, de Afonso de Miranda, do âmbito da literatura de natureza restritamente médica. Recusando assim discricionariamente assumir o vestígio e denunciando um critério liminar para atribuição de espécie médica a um objecto.
O Dialogo da Perfeiçam, que reproduz um paradigma que anda perdido nas origens da dramaturgia e comédia castelhana, imortalizado por Juan de Mena, é um importante vestígio da descrença na medicina.
Na terceira década do século XVIII, Don Diego de Torres Villaroel, Cathedratico de Mathematicas de Salamanca, um dos mais sábios pícaros castelhanos, protaginiza uma intensa produção de textos deste género, que me parecem obedecer a um programa de denúncia da vulnerabilidade dos tópicos da modernidade, de que a medicina se representa como paradigma. Este empreendimento tem eloquentes sequazes em Portugal, no domínio de um alucinante universo de literaturas marginais que deve passar a ser abordado com outros critérios, lunários, prognósticos, calendários, almanaques, como António Pequeno.
É em Diego de Torres que surpreendo uma notável conjunção com os assuntos que verso neste ensaio:
La medicina nadie la conoce; dicese que hai, pero nadie sabe donde vive. El Medico es un embuste politico, que solo sirve de engalanar las republicas: assiste a los enfermos, pero no los sana; es un testigo de los triumphos de la naturaleza, los milagros, y las muertes.
É quiçá alguma perversão, mas porventura a melhor denúncia explícita da minha intenção, o querer investir em espécie médica estes vestígios.
Não resisto a fazer, mesmo aqui, o registo de alguma produção de Diego Villaroel:
Medico para el bolsillo. Doctor a pie, Hypocrates chiquito. Medicina breve, facil, y barata, para mantener los cuerpos en salud, y curar de los achaques mas comunes. Sirve desde este presente año, hasta el dia de Juicio particular de cada pobre. Y la envía desde Portugal, à unos de valde, y à otros per su dinero. En Sevilla, en la Imprensa Real de Don Diego Lopes de Haro, en calle de Genova. 1734.
El Hermitano y Torres. Aventura curiosa, en que se trata lo mas secreto de la Philosophia, y outras curiosidades de los mysteriosos Arcanos de los Chemistas. En la Imprensa de Diego Lopes de Haro, en Sevilla, calle de Genova.
4. Assim esclareço o sentido da nota (3) ao Prólogo deste estudo. Basta que se perscute a apropriação retórica que, na literatura proposta nessa nota, se faz de um caso, de uma enfermidade, ou de uma sucessão de actos e ocorrências clínicas.
A narração clínica ou cirúrgica, que serve de pretexto ao diagnóstico, aprisionou os actos e as ocorrências numa trama subtil, transportando-os para um contexto narrativo que edifica a continuidade e é um território ambíguo que é já o da retórica.
É esta a natureza dos vestígios.
IV
Entre o hermético aparato instrumental da perícia operatória
e a retórica do discurso disciplinar.
De novo Vesalio e Maximiano.
Não resisto a depôr aqui outra fábula. Numa pequena publicação com que Luís de Pina invocou, na passagem do centenário do seu nascimento, a memória de Maximiano, transcreveu uma facécia de um romance de João de Meira.
João Monteiro de Meira foi o primeiro Professor designado para titular da cadeira de História e Filosofia Médica na Escola Médica do Porto e só não a chegou a exercer por ter subitamente morrido num desastre de viação. Foi substituído por Maximiano. Foi todavia um dos fundadores da disciplina na escola portuense e assíduo colaborador no empreendimento dos Arquivos. Mas foi como romancista que me proporcionou este pequeno trecho, em que se insinua a mais subtil operação da historiografia médica.
Muito poderia ainda discorrer sobre a forma como Luís de Pina enxertou o fragmento literário na sua retórica invocatória. Ele próprio disse bastante:
Perdoai-me generosissimamente esta intromissão de Meira no meu discurso. É que ele cabia aqui com toda a justeza, tão ilucidativo é o seu caso para a história dos médicos letrados da Escola Portuense, como foi Maximiano.
Eis então o trecho do Meira:
Que sim, que conhecia muito bem o Maximiano Lemos, disse o Eusébio Macário, que era um grande homem, um ilustre escritor, um segundo José Agostinho de Macedo; que nestas coisas de Medicina, sabia muito de velharias, de livros, de judeus e outras trapalhadas inúteis.
Que porém a respeito de clínica, não lhe constava que a fizesse e até sabia pouco de remédios, ignorava os unguentos, as pírolas e as pomadas.
O lapidar excerto interessou-me pela descontinuidade que insinua entre a erudição médica e as condições do exercício da prática clínica, quando se trata de representar o todo que é a corporação. A ideia é a de que a legitimidade em que se investe o prático do exercício do ofício, é o reverso da complacência que reverte em desabono da prática social e cultural do erudito. Dois saberes em descontinuidade, uma hierarquia: uns sabem de judeus e de velharias e outros de remédios e de curas.
Mas ainda assim é pouco. Por isso interessa-me remastigar Vesalio.
Penso que uma das razões porque o De Humani Corporis Fabrica foi tão mal recebido em muitos meios e entre alguns dos mestres de Vesalio, foi porque traía a hermética conspiratividade que envolve os ritos de manipulação operatória. Porque era privilégio dos cirurgiões aquele irredutível conhecimento da fábrica humana e porque esse privilégio tinha por apanágio uma conjura, o exercício conspirativo de um poder secreto investido nos seus ritos de iniciação e de coesão. Diante agora de Carlos V expunha-se toda a conspiratividade do ofício, os furtivos roubos de cadáveres, as operações manuais e os aparatos instrumentais e reclamava-se afinal a solidariedade do príncipe.
Claro, diria Sylvius, só falta a prova iniciática de aplicar as mãos à dissecação de um cadáver, porque o segredo do cirurgião não está na nomenclatura nem na morfologia das partes, mas na perícia que move a ponta acerada do escalpelo.
É nesta contradição que culmina, no eixo da sua historicidade, toda a medicina.
Ora, já notei que a palavra cura, como de resto cirurgia, se constituíu sobre o léxico grego que designa mão.
Poderia acrescentar agora que a história da medicina, exercida como a história da corporação e do ofício, é a história de um tenaz, corrosivo e insinuante contencioso entre os médicos e cirurgiões. Antes de poder avaliar em profundidade o significado deste contencioso, ninguém sabe nada de história da medicina.
E foi sobre este contencioso, à medida que se decifrou e se explicitou, que se edificou o papel protagonista da medicina e dos seus tópicos na fundação da modernidade. E no contínuo reajustamento do conceito de modernidade.